Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

HAYTON ROCHA Há rosas que falam

Ri Butov/Pixabay

Há rosas que falam

  • Hayton Rocha

Conversava amenidades com Zeca Baleiro, a quem havia conhecido durante um projeto cultural em 2013, quando toquei em algo que vinha me deixando intrigado: mesmo grandes letristas, ao chegarem na faixa dos 60 anos de idade, não conseguem produzir obras arrebatadoras, inesquecíveis. Não era o caso dele, à época um “menino” de apenas 47 anos.

Referia a achados poéticos raros, sem rebuscamentos, alguns lapidados às pressas, sob encomenda para compor a trilha sonora de um filme ou de uma novela de TV. E lembrei de diversos exemplos:

Se nós, nas travessuras das noites eternas

Já confundimos tanto as nossas pernas,

Diz: com que pernas eu devo seguir,

Se entornaste a nossa sorte pelo chão,

Se na bagunça do teu coração

Meu sangue errou de veia e se perdeu?

(Chico Buarque, aos 36, em 1980, ano de lançamento do álbum Vida)

 

Um raio que inunda de brilho uma noite perdida.

Um estado de coisas tão puras que movem uma vida.

E um verde profundo no olhar a me endoidecer…

Quisera viesse do mar, e não de você.

Porque seu coração é uma ilha a centenas de milhas daqui

(Djavan, aos 32, em 1981, ano de lançamento do álbum Seduzir)

 

Luz do sol

Que a folha traga e traduz

Em verde novo em folha,

Em graça, em vida, em força, em luz.

Céu azul que vem

Até onde os pés tocam a terra,

E a terra inspira e exala seus azuis

(Caetano Veloso, aos 40, em 1982, ano de lançamento do álbum Luz do Sol)

Zeca Baleiro discordou. Não poderia ser diferente, pensei. A classe é meio desunida, mas nem tanto. Porém não ofereceu dados que me fizessem mudar de opinião. Nos reencontraríamos mais adiante, num show que fez em Brasília, mas não voltamos ao assunto.

Pouco antes de conhecê-lo, eu havia assistido ao documentário Vinícius, bela reconstituição da vida e da trajetória artística do diplomata, poeta e letrista Vinícius de Moraes, com depoimentos de alguns amigos dele – Tom Jobim, Chico Buarque, Francis Hime, Carlos Lyra e Ferreira Gullar.

Em certo trecho, Chico recorda que, já próximo do desembarque, convidaram o Poetinha para mais uma noitada nos bares de costume. Ele recusou sob o insólito argumento de que iria assistir Baretta, um seriado policial norte-americano dos anos 1970 protagonizado pelo personagem Tony Baretta, um detetive trapalhão (vivido pelo ator Robert Blake) e sua inseparável cacatua Fred. Sinal de que Vinícius já não pensava em obras arrebatadoras e inesquecíveis (faleceria em 1980, aos 66 anos).

Há poucos dias, contei essa história a um amigo, que me deixou preocupado com suas justificativas: “Tem a ver com a motivação. Quando jovens, temos muitos sonhos, muitos objetivos, muitas lutas a serem travadas e, o principal, amores em curso. Com o tempo, as emoções se acalmam, a alma sossega e a produção intelectual diminui. É substituída pela cautela, pela paz interior que antecede a morte…”

Contei a outro, que foi menos fatalista, mas cruel: “Veja o caso de Roberto e Erasmo Carlos: as canções do último quarto de vida não chegam aos pés das antigas. Caetano entrou numa fase de experimentalismo com letras que parecem aqueles quadros abstratos que só o autor entende. Alceu vive do passado. Milton, nem se fala. Fagner ficou bobo e de mal com a vida. O Chico ainda faz algo bom, mas nada inesquecível…” – queixou-se.

Heraldo Palmeira, editor deste Giramundo, me disse: “Minha resposta é mais simples e baseada no que já disseram a respeito: esses caras todos, no momento de sua maior expressão artística, tinham um inimigo comum a enfrentar, a falta de liberdade que o regime militar impunha ao país. Eles eram as vozes da liberdade, sabiam disso e não paravam de tentar encontrar saídas pela poesia de suas músicas. E não me furto a considerar que, em alguns casos, o posterior conforto material que alcançaram pode ter retirado a urgência que provoca a inspiração”.

Quase convencido de que sempre estive certo em minha tese de mesa de boteco, somente agora me vieram à cabeça Cartola e As Rosas não Falam.

Conta-se que Dona Zica, sua esposa, ganhou algumas mudas de rosas e resolveu plantá-las no jardim. Dias depois, ao abrir a porta bem cedinho, ficou em êxtase com a quantidade de flores que desabrocharam. Chamou então o marido e quis saber:

– Cartola, por que nasceu tanta rosa assim?

– Não sei, Zica. As rosas não falam… – ele respondeu, sorrindo.

E ficou mastigando a frase, como se fosse um palito. Quando faltavam três dias para completar 65 anos, nasceu a “criança”. Cartola, que faleceu em 1980, aos 73 anos, dizia que a canção havia sido presente de Deus.

Sobre a obra-prima, aliás, Paulinho da Viola conta que, em 1973, quando trabalhava na TV Cultura, em São Paulo, num programa que apresentava pessoas ligadas a escolas de samba, recebeu a visita de Cartola, que lhe pediu para mostrar uma de suas composições. E comoveu-se quando ouviu, pela primeira vez, a inesquecível declaração de amor de um poeta popular sessentão:

Queixo-me às rosas,

Mas, que bobagem! As rosas não falam.

Simplesmente as rosas exalam

O perfume que roubam de ti, ai

Se eu voltar a encontrar Zeca Baleiro, prometo que direi que estava enganado. Ele tinha razão.

*HAYTON ROCHA, escritor e blogueiro

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