Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

HAYTON ROCHA Bolas de Natal

Tim Kawasaki

Bolas de Natal

  • Hayton Rocha

Andam de mãos dadas pela primeira vez a Copa do Mundo e o Natal. Só os deuses do futebol (e os anjos das cabines de VAR) sabem aonde isso vai dar, inclusive para alemães, belgas, dinamarqueses, espanhóis e uruguaios, que já ficaram pelo caminho. Algumas imagens têm lugar cativo na tela da memória de milhões de crianças que, ao redor do planeta, amam uma bola de futebol acima de todas as coisas.

Há muito tempo, ao ganhar de presente de Natal minha primeira bola, senti pelo peso do embrulho – com disfarçada frustração – que não era daquelas de couro com câmara de ar em que se passava sebo nos pontos para protegê-la da água, da lama, dos arranhões no campinho de terra batida ou no calçamento da rua.

Era de plástico (vinil). Doía quando batia nas coBstelas, na barriga ou nas coxas, sem falar de outras partes em franco desenvolvimento. Corri pelas calçadas da imaginação encarando adversários, tentando fintá-los, um a um, até a esquina.

Finta é aquele lance individual no futebol, vôlei, basquete, boxe ou capoeira, em que bastam duas ou três gingas de corpo para desvencilhar-se do oponente. É fazê-lo acreditar num movimento de ataque ou defesa que não irá acontecer, dificultando sua reação ao que de fato vem em sua direção. É também uma habilidade comum em certas figuras públicas, diante do TCU, do STF ou, pior, da imprensa.

Nunca fui bom nisso. Meu dom de iludir floresceu noutros campos. Meu irmão Dula (Hélder), sim, foi craque. Na área esportiva, que fique claro! Baixinho, canhoto, ligeiro, quatro anos mais novo que eu, era doutor na arte da finta, com imperdoável requinte: o escárnio sobre os adversários enfileirados que queriam esquartejá-lo após firulas e risos de deboche. Só não conseguiam por conta da proteção de anjos da guarda bons de briga de rua: seus três irmãos mais velhos. Não fosse tão míope, Dula teria voado, com suas fintas, no céu do planeta da bola.

Por falar em fintas – que imortalizaram Carlitos, Garrincha e Muhammad Ali em diferentes campos artísticos –, dava para ver que se tratava de uma dança lúdica, de que algumas crianças já nasciam sabendo seus passos de cor e salteado, assim como choravam, dormiam ou mamavam.

Esse “vou não vou… fui!” era aperfeiçoado na mais tenra idade. De tardezinha, quando o sol esfriava, na porta de casa surgia sempre uma mãe cansada e impaciente com uma chinela na mão em forma de ultimato, obrigando a meninada a correr para o chuveiro no melhor da brincadeira.

Muitas vezes, o medo de se molhar levava a dona da chinela – nada mais que uma zagueira sem jogo de cintura – a desistir da perseguição, mas não de uma advertência capaz de diluir a cera dos ouvidos daqueles que se faziam de surdos: “Tire o grude das orelhas, cabra safado, senão eu lhe pego depois…”

Sobre motivar as primeiras fintas diante dos obstáculos da vida, a chinela virava instrumento pedagógico bem mais razoável do que, por exemplo, a palmatória ou o cinturão. De ruim, só o vexame quando a lapada na bunda acontecia ainda na rua, na esteira da gozação de uma vizinhança nada solidária.

Mesmo assim, com todo respeito a quem pensa diferente, a chinelada continha inegáveis atributos psicológicos: restabelecia limites esquecidos e estreitava laços de afeto entre mães e filhos. Tanto que, dos sons que guardamos na memória, um dos mais nítidos é o daquele corretivo nas nádegas. Quando na bunda dos outros, inclusive, o som parecia ainda mais interessante.

Era indispensável que fizesse aquele barulho clássico que quase todo mundo já ouviu, sob pena de não surtir o efeito esperado nem ficar retido na lembrança. O estalo inconfundível seria a tecla play da trilha sonora de um choro sentido que na maioria das vezes desaguava num abraço pleno de amor, lágrimas e remorso.

Há quem diga que são necessários pelo menos 400 anos para que um objeto de plástico se decomponha e desapareça para sempre do meio ambiente. Se isso é verdadeiro, invoco o meu sagrado direito de interrogar a mãe natureza: aonde foi parar a minha primeira “amiga do peito”?

Ninguém sabe que fim ela levou. Se houve crime – Furto? Roubo? Esquartejamento e ocultação das partes? –, está prescrito, perdoado. No trem que partiu da estação de minha infância só me deixaram trazer algumas imagens que vagam, de novo, nas sombras de minhas recordações neste Natal.

*Hayton Rocha, escritor

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