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Coisa para poucos
- Hayton Rocha
Ultimamente, minha maior aflição tem sido a hora de ir para a cama. Mas antes que alguém insinue que isso tem a ver com a proximidade de meus 66 anos, adianto que são as dores lombares as verdadeiras vilãs dessa novela.
Quase todo dia, às quatro da madrugada, minhas costas recusam qualquer tipo de colchão, por mais confortável que seja. Só aceitam de bom grado as curvas de uma rede pendurada na varanda, que se torna o refúgio perfeito, numa afronta à lógica e ao senso comum.
Costas, aliás, que se fazem de míopes quando saio para a caminhada matinal, diante de tantas criaturas que dormem ao relento na dureza de papelões estendidos em bancos e nas calçadas, vencidas pelas desigualdades que as ruas escancaram, ainda que a brisa morna queira adocicar a cena.
Costas que reconhecem, inclusive, que na lista das melhores coisas para se fazer nessa vida, duas dependem de um bom local para se deitar. A segunda é dormir, esse deleite ainda isento de impostos, tarifas e taxas. É natural, portanto, que as dores lombares mexam com o humor de qualquer um, e não seria diferente comigo.
Há quem sonhe com um príncipe encantado (ou uma princesa) que leve a sua cara-metade no colo para a cama e, depois de tudo, faça uma faxina na casa enquanto ela tira um cochilo. No meu caso, isso é impensável. A minha não perde um minuto de vigília, e eu jamais ousaria despertá-la para tais façanhas.
Porém, antes que alguém pense bobagens, registro que considerações sobre meu peso estão educadamente dispensadas. Aliás, minhas dores podem estar com os dias contados, pelo que andei lendo sobre uma espécie de “luxo de dormir” chamada Alaskan King Size, que virou sensação nas redes sociais.
Esse colosso industrial mede 2,74 metros tanto de cumprimento quanto de largura, fazendo as camas king size brasileiras, de apenas 1,98 m x 1,85 m, parecerem brinquedos de bonecas (nem sei se ainda existem). Nem mesmo as tais super king, com seus 2,03 m x 1,93 m chegam perto.
Curioso é que os tamanhos variam ao redor do mundo, e no mercado dos Estados Unidos, levam nomes inspirados nas regiões de origem – Texas King, California King, Wyoming King, Alberta King – e, claro, a gigantesca (e maior de todas) Alaskan King, batizada em homenagem ao território glacial no extremo norte do planeta.
A Alaskan King virou curiosidade exótica entre os brasileiros. Não faltam comentários divertidos de internautas: um brinca sobre a necessidade de um Uber para cruzá-la na diagonal, outro ironiza sobre a dificuldade de encontrar lençóis para o enxoval, e um terceiro sugere que, pela “extensão territorial”, deva ter seu próprio IPTU, martírio que, junto com o IPVA, nos lembra de que não somos donos de nada nem no capitalismo de mercado.
Esse “latifúndio” é vendido como item de luxo ou solução para famílias numerosas, podendo custar o equivalente a um pequeno imóvel, especialmente se dotado de personalizações e materiais nobres. Dentre as versões mais caras, uma cama custa mais de US$ 15 mil (R$ 73,8 mil) – pequeno tesouro, convenhamos. Caso de o sujeito perder o sono, com ou sem dores lombares.
Mas tem gente que não se encanta com essa vastidão amazônica. Uma usuária, falando sobre suas relações poliamorosas, lamentou que a Alaskan seja grande demais até para o trisal de que participa, ironicamente refletindo uma realidade moderna onde três salários mal cobrem as contas do mês. “Ela é tão grande que para dormir de conchinha são necessárias umas cinco roladas para alcançar o outro lado”, queixou-se.
Toda essa história me remeteu ao primeiro grande salto de qualidade em minha dormida cotidiana: quando troquei uma rede, num quarto sem janela nem ventilador, por uma cama de campanha dobrável, revestida em lona verde, com o bônus de uma espiral da marca Sentinela para espantar muriçocas, apesar do risco de morrer carbonizado. Inesquecível, ainda assim, mesmo porque não havia naquela época o menor sintoma de dores lombares.
E enquanto pesquisava sobre um remédio sem contraindicações para a minha maior aflição ultimamente, dei de cara com a propaganda da Alaskan King Size, que foi ganhando corpo como alternativa tentadora para as minhas madrugadas insones.
Acontece que o recente reajuste das aposentadorias do INSS, na casa dos 3,7%, recomenda que devo continuar fiel à minha velha rede, no gozo de uma das duas grandes alegrias da vida que dependem de um lugar aconchegante para se deitar.
Pois se existe uma coisa que pode dar uma ideia de céu, de bem-aventurança, de paz entre as criaturas de boa vontade, é acordar de um sono profundo e restaurador sem dor alguma, nem na alma. Coisa para poucos.
*HAYTON ROCHA, escritor e blogueiro
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