Qimono/Arek Socha/Pixabay
E o livre-arbítrio?
- Hayton Rocha
Dia desses eu conversava com um amigo baiano, escriba dos bons, que anda meio azedo por conta da dificuldade de encontrar quem goste de ler e escrever. Tem até opinião formada sobre a causa do problema: o ChatGPT! E desabafou, carregando nas tintas: “você sugere um tema qualquer e o computador cospe um texto mastigadinho, feito banana amassada com farelo de aveia. Tá virando drama inclusive para os mercadores de monografias, que estão perdendo a reserva de mercado”.
Tentei discordar, mas sem muita firmeza, apenas buscando esticar um papo que me dava retorno reflexivo: “Olhe só, o ChatGPT, assim como a maioria das inovações tecnológicas, veio apenas para facilitar a vida no vale de lágrimas. O problema é a preguiça generalizada, que tem sido a mãe de quase todas as invenções. Até pensar agora é serviço terceirizado. O xis da questão é como usar a ferramenta, para o bem ou para o mal. E essa história de ‘livre-arbítrio’ é igual a democracia perfeita: é bonita no papel, mas na prática… Sei não, viu?”.
Como eu não estava muito seguro daquilo que defendia para convencê-lo, reforcei o argumento citando um gênio que segue vivíssimo na memória do povo brasileiro, João Ubaldo Ribeiro. Dizia ele, em resumo, que sem livre-arbítrio, o homem não é nada, não tem dignidade nem responsabilidade. Se queremos um mundo melhor, temos que correr atrás, porque o mundo é nosso. Não dá pra esperar que Deus resolva tudo.
Consegui convencer meu amigo daquilo de que não tinha tanta certeza, mas fiquei matutando. Então resolvi mergulhar um pouco mais no assunto. Descobri que um tal de Robert Sapolsky, cérebro de primeira grandeza vinculado à Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, andou estudando babuínos selvagens no Quênia e demonstrou como o estresse social afeta a saúde dos animais. Tempos depois, virou neurocientista e concluiu que livre-arbítrio não passa de lenda. “Somos frutos daquilo que não controlamos: nossa biologia, o ambiente, a interação entre eles”, ele escreveu.
Faz sentido? – me perguntei. Será que a gente decide alguma coisa mesmo? E se pegar isso de que “somos frutos daquilo que não controlamos”, o que vai ser de nós numa sociedade onde chafurdam elites (com o perdão da palavra!) empresariais, políticas e judiciárias, agindo em benefício próprio com suas artimanhas em produzir verdades a granel?
E quem não quer um pouquinho mais de liberdade nessa vida? Mas será que temos mesmo liberdade de escolha? Falo desde decidir entre café com ou sem açúcar, salsa ou coentro, até os grandes dilemas éticos, morais e políticos.
Essa discussão do livre-arbítrio saiu das mãos dos filósofos e teólogos e caiu no colo dos neurocientistas. E eles agora questionam se realmente a gente escolhe alguma coisa. Dizem que nosso cérebro decide antes de a gente notar. Igual o coração, que tem vida própria, bate quando quer, até que certo dia…
Mas o que é escolher conscientemente? Filósofos e neurocientistas estão numa disputa danada. No futuro, tudo indica que será possível prever decisões antes mesmo de a pessoa saber. Vem aí uma revolução filosófica! Decisões complexas, no entanto, como juntar as escovas de dentes com a pessoa amada, escolher uma carreira, cometer um crime ou romper um relacionamento continuarão um emaranhado de escolhas e reflexões.
Talvez essa confusão toda seja apenas um nó na nossa compreensão da consciência humana. Afinal, se somos aquilo que não controlamos (a herança genética, o ambiente e a interação incluídos), então o livre-arbítrio “irresponsável” pode nos estimular a cometer sem culpa alguns pecados capitais. A gula e a luxúria, por exemplo.
Quem sabe, quando este mundo for repaginado, a gente pare de tentar convencer os outros daquilo em que nem acredita. Tem tanta coisa que fazemos sem pensar que é pecado, mas ser intelectualmente desonesto está virando prática abusiva, assédio moral, pois pode expor alguém a situação constrangedora.
Já desejar a cara-metade alheia, como diz o meu amigo baiano, é injustamente classificado desde que o mundo é mundo. Segundo ele, precisaria ser excluído da lista. “Que seja pecado avançar sem o consentimento, mas só cobiçar de longe, sem tocar num fio de cabelo da criatura, meu Deus, não deve ser pecado. E o livre-arbítrio, como fica?”
Fato é que, mesmo aqueles que não acreditam em livre-arbítrio e acham que está tudo predeterminado, que não se pode fazer nada para mudar o que foi escrito nas estrelas, ainda olham pros dois lados antes de atravessar a rua.
*HAYTON ROCHA, escritor e blogueiro
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