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Veja bem…
- Hayton Rocha
Sexta-feira passada, conversando numa live com Dedé Dwight, que ilustrou com belas imagens o livro Frestas, ele me perguntava sobre o que me levou a escrever e compartilhar textos neste espaço criado há quatro anos, depois de 40 anos no ofício bancário.
Respondi ao filho de Dona Artemy que não sou (nem pretendo ser) um especialista em gramática ou em técnicas de redação. Talvez, por ter prestado bastante atenção ao que escreviam alguns colegas de trabalho, e ter sido leitor compulsivo de O Pasquim (em especial dos textos de Millôr Fernandes, Henfil, Ivan Lessa, Jaguar e Paulo Francis), aprendi a redigir melhor, ainda que tudo continue muito intuitivo, como “tocar de ouvido” sem conhecer teoria musical.
Reconheço que li menos do que deveria, mas tenho visto e ouvido lugares incomuns, estranhas construções mesmo a olhos e ouvidos menos exigentes como os meus. E antes que a comunidade linguística me corte o pescoço ou me condene à fogueira dos estúpidos – depois destas linhas, meu caro leitor! –, espero que ela releve e tome apenas como um resmungo de um galo velho metendo o bico onde não é chamado.
Não me refiro a construções como “recordar o passado”, “prever o futuro”, “elo de união”, “subir para cima, “sair para fora”, “descer para baixo” ou “entrar para dentro”. Essas asneiras, contudo, têm o condão de nos provocar terríveis dores visuais e auditivas, e a ciência ainda deve à humanidade um colírio e uma solução otológica para torná-las menos incapacitantes.
Minha rabugice lateja é com outras bobagens que tentam me enfiar goela abaixo, como jargões fardados do tipo: “O elemento empreendeu fuga” (fugiu?). “O comparsa trajava… (nunca vestia!). Ou, “O meliante não resistiu e veio a óbito” (Se morreu, não tinha mesmo como resistir). Ė dose pra mamute!
Deve haver um bom motivo para o uso da expressão “respeito à pessoa humana”. Juro pelo cachimbo da parteira que me puxou que nunca encontrei na vida uma pessoa canina ou suína. Claro, nos anos 1990 houve o caso da cadela do ex-ministro Magri, “um ser humano como qualquer outro”, mas eu não cheguei a conhecê-la. Já vi, isto sim, muito cachorrão em suas relações desumanas. Ou porco, quando, por exemplo, se senta à mesa e chafurda tudo. Mas não é disso que se trata.
Essa coisa de “pessoa humana”, aliás, é tão comum pelo mundo afora que na Declaração dos Direitos do Homem, onde escrito “na dignidade e no valor da…”, lê-se human person no inglês, personne humaine no francês, persona humana no espanhol e persona umana no italiano. Sem falar no que está escrito em documentos oficiais de ONU, OMS, Unesco, ou no título de milhares de livros jurídicos e religiosos.
Como não me enxergo cachorro nem porco (ainda!), quem sabe não passo de uma pessoa equina – uma espécie de cavalo de desfile, trotando e relinchando para o palanque que me vê passar.
A obsessão por certos termos parece uma “cachaça” para advogados, padres, pastores, políticos, jornalistas, locutores e outros que lidam com a palavra. “Todos são unânimes em reconhecer”, dizem uns. Pergunto: teria como uma unanimidade não envolver a todos? “Mas isso é regra geral”, dizem outros. A regra deveria ser parcial? “São pequenos detalhes”, muitos dizem. Ora, existem grandes detalhes?
Até você, leitor, um dia já usou a expressão “Veja bem”. Quem recorre a essa espécie de fôlego reflexivo, antes de dar uma resposta, na verdade quer enrolar quem pergunta. Não quer que veja coisa nenhuma.
Por exemplo: o marido certificando-se de que a esposa comprou aquela bolsa de R$ 5 mil.
– Você teve coragem?
– Veja bem… – ela responde (leia-se: comprou!).
Ou a esposa querendo saber se ele chegará mais cedo em casa, adiando o chope com os colegas após o trabalho:
– Tô esperando, hein?!
– Veja bem… – ele diz (leia-se: vai cair na farra!).
E ninguém está livre do pecado. Andei relendo alguns textos que escrevi e, confesso, descobri construções imperdoáveis:
– “Pra dizer a verdade…” – Ora, então eu sou mentiroso? Tenho que avisar quando for pra valer, sério…
– “Pra começo de conversa…” – Por acaso, eu estaria no final da prosa?
– “Eu, se fosse você…” – Peraí! Se não sou você, nunca vou raciocinar como se fosse!
– “Não dou o braço a torcer…” – Alguém já deu? Se deu, a torção pode ter deixado o membro bem dolorido.
– “Sendo bem sincero…” – Será que, no geral, eu não passo de um fingido?
Estou seguro de que você também já ouviu alguém dizer que “isso é sopa no mel”? Quem inventou essa expressão tinha o paladar, no mínimo, duvidoso. Não provo uma colher dessa mistura nem com um pão francês quentinho.
Mas, veja bem… Se você achou graça no que leu até aqui, saiba que algum sabichão da comunidade linguística poderá lhe pedir para tirar o sorriso dos lábios, dizendo que exagerei. Bem, de onde mais poderia tirar o sorriso? Das orelhas? Das sobrancelhas?
*Hayton Rocha, escritor e blogueiro
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