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Adeus, crianças
- Heraldo Palmeira
No século 1 a.C., o general romano Pompeu estava diante de uma grande tormenta e precisava levar seus navios para Roma, destino do carregamento de trigo embarcado na África, Sicília e Sardenha que abarrotava os porões. Além da fúria da natureza, havia a constante ameaça dos ataques piratas. Para encorajar seus marinheiros teria dito “Navigare necesse, vivere non est necesse”.
No século seguinte, o filósofo e historiador grego Plutarco garantiu a transmissão dessa fala motivacional ao incluí-la na biografia do famoso militar navegante. Daí em diante a frase veio perambulando pelos séculos, até que o poeta italiano Petrarca arredondou para “Navegar é preciso, viver não é preciso” no século 14. Ela seguiu viajando no tempo e finalmente chegou ao poeta português Fernando Pessoa. Ficou afamada.
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
“Navegar é preciso; viver não é preciso”.
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
Transformada a forma para a casar como eu sou.
Tudo aparenta ser muito simples e certo nos primeiros tempos da vida. A infância é uma torrente de grandes novidades, onde parece só haver lugar para a responsabilidade de brincar. Segue assim até chegar a idade de perceber que as coisas nunca são muito simples e que nada é certo. É quando floresce a consciência de que estar aqui não é apenas o mistério da junção de corpo e alma que ganhou o sopro divino. Há uma senha pessoal e intransferível para viver essa tremenda aventura sem manual de instruções.
De repente, ganha todo sentido “viver não é preciso”. É o tempo em que se começa a desfazer a suposta dubiedade entre necessidade e exatidão que a leitura do verso parece oferecer, e vem a pulga atrás da orelha se o autor não apenas brincou com as imprecisões que nos afligem. Difícil acreditar que tendo já vivido um bom tanto da vida ainda estivesse preso a necessidade. Ora, àquela altura ele havia se tornado completo senhor do próprio terreno onde as coisas haviam deixado de ser simples, onde nada era certo, nada mais era preciso.
A infância passa rápido e a vida corre repetindo amanheceres e anoiteceres separados pelo inesperado, como se os dias fossem papel e tinta escrevendo histórias pessoais cujos capítulos são as marcas que os espelhos mostram sem qualquer filtro.
O próximo passo leva a filhos e sobrinhos. Viram batalhões com os colegas de escola e os amigos conquistados nessas conexões, que nos vão transformando em “tios” a torto e a direito. Entram e saem pela casa transformando tudo numa enorme plataforma de afetos que também inclui suas famílias. Mais um pouco, e a gente nem se dá conta, nossas crianças subiram degraus, já lançam olhos dos primeiros desejos na direção daquela “sobrinhada”.
Na rodada seguinte, vestibular, faculdade (“navegar é preciso”), a empáfia de quem aprendeu a saber tudo e ter sempre razão (“viver não é preciso”)… A gente sabe que vai chegar o dia de as crianças irem embora. Para que pensar nisso agora? O tempo… quem sabe?
Uma, outra, mais outra… E lá se foram nossas crianças para suas próprias vidas. Enfrentaram grandes concorrências profissionais com tantos candidatos que só caberiam em ginásio ou estádio. Mesmo assim o coração fica apertado, há o medo de que não estejam preparadas.
Os vazios vão se instalando pela casa com assombrosa intimidade. Na verdade já estavam ali, encobertos pelo resto de convivência ainda por cumprir na casa original – o pedaço final do presente já assumindo sua nova face, a parte inicial do passado.
O cenário que fica é impreciso e estranho. Tem uma carinha enganadora que enfeita o adjetivo “recente” com uma dubiedade piedosa, vã tentativa de minimizar o presente que acabamos de perder e a saudade que começamos a sentir. Tudo muito recente.
O silêncio é um traço inconfundível de que nada será como antes. São menos pratos à mesa. O varal já não parece insuficiente. A garagem ficou maior. Os animais se mostram confusos com a calmaria e vagam pelos quartos numa procura que sabem desnecessária. As portas todas abertas são mais assustadoras, mostram que o vazio passou a morar ali.
Em pouco tempo as lembranças vão começar a esmaecer lentamente como velhas fotografias. Haverá como testemunha aquele par de tênis que estava esquecido no fundo do armário e não cabia na viagem. Logo aquele, que pisou tantos pontos importantes do caminho. É assim mesmo, as crianças sempre olham para a frente, tanto que crescem. Nós é que temos esses apegos infantis e melosos.
Mais um pulo do puto do tempo e estamos visitando nossas crianças em seus futuros. Falam de pessoas e histórias novas, carregam nos braços suas próprias crianças. Num piscar, viramos avós, que coisa! E começamos a ouvir relatos infantis e melosos em outra frequência, como se o velho par de tênis estivesse novamente nos pés de quem o largou para trás.
De volta para a casa original, a velha poltrona de fazer nada acomoda o prazer do silêncio. É preciso decifrar aquele mundo novo das nossas crianças, onde quase tudo tem cara de desconhecido, inclusive a nova casa original que ergueram.
Já não é tão estranho ter menos pratos à mesa, mais espaço no varal e na garagem. Os animais que sobraram estão velhos e resignados, além do que ficaram caducos, não lembram muito mais. As portas todas abertas ajudam a arejar o ambiente. As marcas do tempo na cara-metade são as mesmas, tanto faz quem esteja olhando.
A missão não foi perfeita porque viver não é preciso, é poesia. Mesmo assim, as crianças que foram embora agora estão aprendendo a lidar com suas próprias contagens regressivas. É como se fosse a montagem de um evento, sempre haverá algo de improviso, onde será preciso aceitar o impreciso quando for necessário prender tudo com fita crepe e pensamento positivo. E seguir.
A calmaria da casa original traz os sussurros do tempo em que fomos as crianças que foram embora. Revejo a imagem da alegria triste no rosto de minha mãe me vendo ir embora sem conseguir me segurar. Era o meu sonho de futuro arrancando um pedaço definitivo do presente dela – hoje tudo é um passado que dá vontade de chorar de saudade. Estava nela aquela força estranha que nos move disfarçando as dores.
Entrei na rota que mostra sem rodeios o quanto a vida nunca deixou de ser provisória, é apenas finita e sua trilha está sempre aberta entre o incerto e o impreciso. O tempo cumpriu seu papel e envelheceu tudo, mas as crianças que vão embora são as mesmas. Navegar é preciso.
Pendurado na parede, o quadro comprado numa feira de artesanato se divide entre enfeite e sabedoria: “A perfeição não é alcançada quando não há mais nada a ser incluído, mas quando não há mais nada a ser retirado.” (Antoine de Saint-Exupéry).
– Para Débora, Pedro e Júlia, as crianças que foram embora de casa, para quem guardamos a velha poltrona de fazer nada.
*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural
Ouça Força Estranha https://open.spotify.com/track/6sKopGG4r21ObTE8V6pD6x?si=c45ccd1b5a894326