Por Heraldo Palmeira
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22 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA Água no doutorado

Tim Kawasaki

Água no doutorado

  • Heraldo Palmeira

Encontrei Afonso afobado. Obra do acaso numa sexta-feira em plena avenida Paulista – quem vive em Sampa sempre passa pela Paulista. Fazia tempo que não nos víamos, nós que havíamos sido muito próximos no primeiro período que vivi na cidade, na virada dos anos 1980/1990.

Tivemos tempo para um café num Starbucks ali perto e marcamos almoço para o dia seguinte. Escolhemos o Gigetto velho de guerra, com aqueles pães maravilhosos de entrada em seu ambiente enorme e retrô. Repleto de boas histórias da Pauliceia Desvairada, localizado no que chamam de “rua mais charmosa de São Paulo” e até mesmo “pedacinho do paraíso na cidade”. E vizinho da Trattoria Famiglia Mancini, fundada em 1980, que o tempo transformou em ponto turístico paulistano. Boa escolha.

Depois das amenidades comuns à “abertura dos trabalhos”, a entrada de pães já servida, azeite, manteiga e sal à mão, e duas garrafinhas de Perrier, ele achou um mote para reclamar da nova namorada. Bem mais nova que ele, na casa dos 30.

Afonso não se conformava que ela, que gostava tanto de água com gás, nunca tivesse ouvido falar em Perrier. “Como pode essa mulher não conhecer a francesinha verde?”, perguntou-me indignado. “Tem mestrado na USP, vai fazer doutorado por lá e anda falando em pós na Espanha!”.

Tentei ponderar utilizando a própria rua Avanhandava. Quem, nessa faixa de idade mais nova, tem ideia do significado do Gigetto na história do teatro e da melhor boemia paulistana? Afinal, era uma espécie de ancestral dessas cantinas italianas que proliferam pela cidade, desde sua fundação, em 1938. Só ali, estava há 44 anos, depois de morar em dois endereços anteriores (Rio Branco até 1949 e Nestor Pestana até 1969).

Quem poderia comprovar a versão de que o concorrente Walter Mancini fez de tudo para a casa não fechar – e até consta a lenda urbana de que teria comprado uma parte da sociedade –, exatamente para manter intacta a nobreza daquela ruela? Verdade ou não, merece reconhecimento apenas o romantismo capaz de espalhar o rumor. Ora, o Gigetto era parte de uma lista ilustre da história gastronômica paulistana ao lado dos italianos Carlino (1881) e Capuano (1907), do brasileiríssimo Sujinho (1921), da pizzaria Castelões (1924), do Moraes/Rei do Filé (1929) e do francês Freddy (1935).

O garçom, sempre ao alcance de um aceno, chegou e não inventamos moda: capelete à romanesca, cuja receita com creme de leite, ervilha, cogumelos e presunto fora criada pelo velho garçom italiano Giovanni Bruno e seguia como ícone do menu desde sempre.

Procurei relativizar a chateação do meu amigo me apoiando na mudança dos costumes, na forma atual de as pessoas se relacionarem com suas preferências. Para nossa geração, os endereços e as marcas dos velhos tempos que ainda sobrevivem são como santuários, para onde sempre rumamos sem pestanejar, talvez em busca de reviver certas felicidades quase perdidas. As novas gerações têm outros interesses, preferem se guiar apenas pelo que está bombando nas telinhas insípidas dos influenciadores, sem esses nossos vínculos duradouros que provocam saudade até com dores.

“Como pode uma socióloga que se entope de títulos acadêmicos não compreender o cardápio, a decoração dos restaurantes e a própria rua Avanhandava como manifestação cultural inteiramente original de uma São Paulo cosmopolita?” – Afonso estava irredutível listando os pecadilhos que encontrava na moça e citando a indiferença dela quando esteve por ali. “Esses meninos de hoje em dia não sabem nada de nada, estão reduzidos a meia dúzia de chavões”.

Tentei contemporizar, apelar para a capacidade de compreender que vamos adquirindo com a chegada da idade. Sem sucesso. Nem adiantou lembrar que nossa geração era movida por outros sentimentos, outras formas de encantamento de um mundo que já não existe. O sistema de comunicação era lento e romântico. Os símbolos e os ídolos do nosso tempo eram muito mais duradouros do que o consumo imediato e essas celebridades instantâneas e rarefeitas de agora.

Quando, hoje em dia, teríamos uma Marilyn Monroe, a deusa que povoou os sonhos e os desejos mais secretos de todos os homens e mulheres do planeta durante anos a fio? Não vivíamos esse frisson de milhares de novidades por minuto de hoje e tínhamos o luxo de criar mitos deslumbrantes e longevos.

A mesma deusa que foi sondada pelo armador grego Aristóteles Onassis para casar-se com o príncipe de Mônaco. O mesmo Onassis que queria manter sua hegemonia nos negócios tendo aquele paraíso sob controle e tratou de resolver o problema do solteirão Rainier. Como não fazia a menor ideia de onde ficava o principado e queria saber se “o tal de Mônaco” tinha dinheiro, Marilyn perdeu a vaga para uma atriz também linda, mas bem menos estelar chamada Grace Kelly, musa do diretor Alfred Hitchcock. Irlandesa, católica, um pouco mais culta e com olhos mais abertos às oportunidades do mundo.

A lendária Marilyn, sabemos hoje, era uma atriz limitada que escapou da sarjeta em que foi atirada desde cedo para atender às taras de homens de toda estirpe, que morreu entupida de remédios no meio de uma luta sem saída entre Norma Jeane Mortenson e seu personagem estrondoso glamourizado pela mídia. A deusa do cinema que virou um dos maiores símbolos sexuais de todos os tempos, e mesmo assim buscava afeto até com os entregadores de pizza que chegavam à sua mansão trazendo comida. Alguém que, aos 30 anos – segundo biografia escrita por Norman Mailer –, já contava 12 abortos. Num papel ou noutro, usava a beleza e a capacidade de seduzir para avançar em busca do sonho de ser amada e feliz. Alguém que derrapou definitivamente na curva quando levou para a cama os irmãos John e Robert Kennedy e emaranhou-se nos novelos de investigações, escutas telefônicas, espionagem, contraespionagem e chantagem de FBI, CIA, KGB, Máfia, detetives particulares e escroques em geral.

Se Marilyn não sabia sequer o que era Mônaco, quanto mais onde ficava, por que nossa quase doutora da USP não podia ignorar a solene existência da Perrier? Quem sabe, não conhecia a Evian, sem gás, mais encorpada, garrafa transparente? Ou a S. Pellegrino, como as outras também presente em mesas do mundo, do cinema e das séries de TV? E daí?

Afonso manteve silêncio absoluto me ouvindo desencavar essas passagens antigas. Parou de se queixar da namoradinha, mestre, quase doutora da USP e já pensando num pós-doutorado na Espanha, distraído pelas historietas que só interessavam a dois homens de meia-idade em aparente crise de saudosismo, como nós.

Resignado, meu amigo disse que nossa guerra contra a ignorância desses acadêmicos de papel está perdida. Não havia como discordar, mas lembrei a ele que temos algo muito mais importante para nos aborrecer doravante. Nossa geração já está pisoteando os sinais da velhice. Por ora, mesmo fazendo o possível para que permaneçam amenos, começamos a adoecer definitivamente – cansaço, artroses, visão comprometida, insônia, desânimo, recolhimento, dificuldade para fazer coisas até então tidas como simples. É como se mudássemos de emprego para conviver com novos colegas inconvenientes que atendem por nomes como consultório, exame, taxa alterada, dieta, remédio, fisioterapia, patologia, esquecimento, clínica, hospital…

Atualizamos os contatos e nos despedimos fervorosamente, tentando driblar a incerteza de que nos veríamos de novo – havia pela frente a vida e seus desencontros, muito além de uma simples água engarrafada, esse prazer mundano que sai na urina. Mesmo assim, não me pareceu delicado sugerir a Afonso contar com marcas menos refinadas no repertório da provável futura pós-doutora. Afinal, poderiam vir a ser faladas em espanhol, já seria algum progresso.

E as incertezas que vivem em toda parte já pairavam no ar trazendo os rumores de que o Gigetto fecharia as portas. Não demorou muito, virou fato consumado. Antes, cambaleante, foi parar na Treze de Maio, fronteira do Bixiga com a Bela Vista, onde respirou por aparelhos por pouco mais de dois anos, e depois sumiu sem despedidas e sem constar em teses acadêmicas – nem isso para garantir-lhe uma caridosa sobrevida além da memória de seus incontáveis órfãos gastronômicos.

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

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