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As meninas francesas
- Heraldo Palmeira
As meninas francesas deviam ter entre treze e quinze anos. Aguardavam o embarque. Eram quatro. Eram quatro livros. Abertos, sendo devorados.
Os smartphones e outros cacarecos digitais estavam lá displicentes, espalhados sobre a mesa da lanchonete. Milagrosamente esquecidos, até pouco vigiados.
As meninas francesas destoavam de tudo e todos ao redor pois não eram ilhas teclando seus individualismos, como ficou comum de se ver. Apenas liam. E, fosse pouco, também conversavam como nos velhos tempos. Ainda por cima, naquele idioma lindo! Comentavam entre elas alguns pontos das próprias leituras, rabiscando as páginas com anotações. Como nos velhos tempos. Eram lindas as meninas daquele jeito!
Sim, elas conversavam animadamente e isso parecia algo estranhíssimo. Senti um sopro suave no coração. As letras pareciam flutuar formando palavras, como um éter que a gente quase consegue ver antes de evaporar.
Aquelas francesinhas não eram ninfetas, não eram lolitas, não pareciam parte desse jogo de sedução. Não tinham sabor de frutas forçadas a amadurecer antes da hora. Não pareciam vítimas da vida cheia de modismos e imposições. Eram apenas meninas embaladas em jeans, camisetas e tênis. Sem batom, sem glamour. Sem antecipar o tempo de suas vidas. Duas delas usando óculos de grau sem qualquer complexo. Apenas liam e conversavam, como sabíamos fazer antes de fingir ter esquecido. Eram lindas! Talvez por isso.
Ao anúncio de voo iminente, juntaram tudo em suas mochilas, mas permaneceram sentadas entregues aos seus livros. Deixaram para seguir no fim, quando praticamente todos já haviam atravessado o portão rumo à pista. Foram as últimas a entrar no avião, logo depois dos seus adultos de estimação. Lendo, lendo, lendo, lendo. Caminharam pelo corredor até seus assentos e seguiram lendo a viagem inteira.
Na revista de bordo, li a respeito de uma espécie de clube do livro por assinatura. Pensei nas meninas francesas e seus livros, e na leitura como tábua de salvação para a ignorância generalizada que nos mostra seus dentes afiados o tempo inteiro. Algo que além de amedrontar entristece.
Lembrei do menino no jantar da noite anterior no restaurante do hotel. Manteve-se cabisbaixo, vidrado no smartphone, enquanto todos os presentes aderiram ao Parabéns pra você a partir da chegada do bolo de aniversário que seus pais e avós – constrangimento mal disfarçado – caprichosamente haviam encomendado.
Para quebrar o clima, fiz um gracejo e convoquei o rapazinho a apagar a velinha número oito. Usei o velho truque de dizer que, se vacilasse, eu mesmo apagaria. O desprezo no olhar que mereci foi tamanho que pensei em soprar e sair à francesa. Imagino que tradução ele encontrou para mim naquela cabecinha de reizinho.
O sopro tíbio não teve força para trazer junto o sorriso cobrado pelos parentes para as fotos. Ele apenas apagou, como se apagasse todos aqueles “chatos” que lhe cercavam fora do seu mundo virtual. Como quem cumpre um compromisso indesejado, sopra um incômodo para longe. Lacônico, distante, quase imantado por aquela telinha abdutora.
Pena que eu não tivesse bola de cristal para antecipar o dia seguinte e me sentir salvo pelas meninas francesas e seus livros abertos sendo devorados. Voltei à realidade com o anúncio do pouso. Saí apressado, mas deu tempo vê-las indo no rumo do embarque internacional.
Imagino que vararam a noite voando a caminho de casa, lendo, sendo felizes, descobrindo o mundo escondido nas letras que quase flutuavam como um éter que a gente quase vê, antes de virarem palavras para contar histórias. Senti um sopro animado apagando aquela velinha da outra noite.
Ainda estou me perguntando se aquilo tudo foi mesmo real, ou se terei sido enganado por alguma holografia no meio da mesmice que nos encerra neste berço esplêndido de coisa nenhuma.
Refiz na memória minhas caminhadas pelas margens do Sena manuseando livros naquelas famosas caixas verdes, sebos quase camelôs onde os buquinistas, especializadíssimos, comercializam raridades impressas, livros, gravuras, cartazes e outros sinais de uma Paris que já não existe, mas parece viva.
Aqueles comerciantes – simpáticos ou antipáticos como só os parisienses antipáticos conseguem ser – estão lá compondo um dos circuitos mais importantes da cidade. Na margem esquerda, entre Ilha de Saint Louis e Ponte do Carrossel. Na margem direita, entre Hôtel de Ville e Louvre. Como não está sempre viva uma cidade que abriga tantas referências históricas em qualquer citação?
Eles também são história em tempo real que fazem circular a palavra escrita surrada, já lida, que maravilhou, que foi tocada por tantos. Páginas marcadas a lápis e borracha, rabiscadas, copiadas, roubadas, vivas.
Páginas que estão passando pela vida das quatro meninas francesas, que passaram como poesia me dando alento, me olhando por dentro, velando por mim. Sem pressa, como devem ser as verdadeiras meninas. Lindas como o som de um acordeão francês. Lidas como as palavras espalhadas pelas margens do Sena. Vívidas vivendo o tempo certo das coisas como um sonho bom.
*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural