Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA Caia na gandaia

NoName_13/Pixabay

Caia na gandaia

  • Heraldo Palmeira

Estamos em pleno Carnaval, uma festa que costumava começar na noite de sexta-feira e seguia lânguida e solta na buraqueira até o amanhecer da tristonha Quarta-feira de Cinzas. Sonhos e tristezas se entregavam até se acabar e todo mundo voltava para casa catando os cacos do que sobrou. Melhor ainda quando havia motivo para aquele sorriso maroto de quem foi feliz. Mais ainda com segredos guardados.

Com origem registrada na Antiguidade, desde uma celebração esquisita (Saceia) dos prisioneiros da Babilônia até festejos reais na Mesopotâmia, um fator claramente carnavalesco já estava embutido: a subversão dos papéis sociais. Numa, a transformação de um prisioneiro em rei; noutra, a humilhação do rei diante da divindade. Depois da festa, tudo voltava ao normal: rei era rei, vassalo era vassalo.

Devagarinho, a Igreja de Roma foi vendo o Carnaval se afastar do latim carnis levale (retirar a carne) do jejum da Quaresma, com seus fiéis transformando tudo numa questão secular ao atender o chamado dos desejos e prazeres mundanos, criando um cisma litúrgico para adorar o profano. Desde as preliminares máscaras venezianas havia ainda muito chão até os trópicos ensinarem que “de uma barrica se fez uma cuíca, de outra barrica um surdo de marcação”. Muito menos havia sido concebido o endiabrado bum bum paticumbum prugurundum de tantos simbolismos – cada um com o seu.

No correr do tempo a festa ganhou novos contornos e motivos e chegou ao Brasil europeizada, pelas mãos dos colonizadores portugueses. Caiu no gosto da colônia e foi transformada pelos brasileiros numa das maiores festas populares do planeta.

Bendiz o antropólogo Roberto DaMatta quando pergunta “O que seria o Brasil sem Carnaval, sem cachaça, sem futebol, sem macumba, sem jogo do bicho, sem sua ladra politicagem, sem jeitinho, sem ‘não fazer nada’ e sem salvacionismos? Sem esse punhado de instituições órfãs de pedigree político-acadêmico que nossos ‘caga-regras’ conhecem como a palma de suas mãos? Quantos de nós seríamos capazes de caracterizar o Brasil sem falar de Carnaval?”. Bobo quem arriscar.

O Carnaval virou nossa cara, algo que esperamos o ano inteiro – até mesmo os não foliões em busca de retiros para descanso e sossego. Tanto que, seja qual for a tribo, fomos dando nosso jeitinho para ampliar o período original. Inventamos blocos e, suprassumo da melhor malandragem, datas prévias e pós-folia (gritos, lavagens, micaremes, micarês, micaretas…). Pouco importa o nome, a onda é garantir a folia além do Carnaval. Nesse embalo, o poder público de vários lugares inseriu – ninguém é bobo – a festa e seus prolongamentos nos calendários oficiais, para felicidade geral de diversos setores econômicos e do resto do mundo da folia.

Desde as Saceias da Antiguidade, o importante é o espírito de válvula de escape para as agruras cotidianas. Sem contar a oportunidade embalada em alegria para as pessoas buscarem suas rotas experimentais até os destinos que desejam. Na letra de Dancin’ Days, grande sucesso (1978) de As Frenéticas, pode estar a senha que leva tanta gente a engrossar o bloco que se atira como se não houvesse amanhã.

Abra suas asas

Solte suas feras

Caia na gandaia

Entre nessa festa

E leve com você

Seu sonho mais louco

Eu quero ver seu corpo

Lindo, leve e solto

A gente às vezes

Sente, sofre, dança

Sem querer dançar

Na nossa festa

Vale tudo

Vale ser alguém

Como eu

Como você

Algo cantado a plenos pulmões por homens fortões, másculos, machistas, homofóbicos, misóginos que aguardam o ano inteiro pela companhia de Momo para soltar suas frangas e fantasmas como alegres meninas, felizes da vida montados em fantasias e adereços femininos. Algo cantado com sorriso nos lábios por meninas que apenas querem viver seus amores iguais por desejo e direito, sumindo na multidão para encontrar sua melhor sintonia. Algo cantado por todos que podem e devem buscar tudo que assim lhes pareça. Seja qual for a música, o que vale é não tentar ser solista quando a partitura mostrar “não” na letra.

Está mais do que dito o que nem precisa ser dito. A festa coloca em cena o frescor para os corações deixarem rolar o que é e precisa ser. Santuário da alegria para espantar demônios, abrir armários sufocantes ou simplesmente deixar as pessoas serem quem são no embalo de frevos, marchinhas e sambas na polifonia da orquestra.

Com seus costumeiros achados poéticos, o querido amigo compositor Carlinhos Santa Rosa, expert em folia, é taxativo: “O Carnaval não é Carnaval sem encontros e despedidas. Ele é um encontro de amores furtivos, fugidios, mas também definitivos, onde as pessoas às vezes encontram sua alma gêmea”. E escoladíssimo em Carnaval de rua, complementa no meio do alvo: “A cidade é a musa dos encantos fatais!”.

O Carnaval é uma grande seção de achados e perdidos humanos, uma vaia no baixo-astral, um rebelde repleto de causas e efeitos que não se submete a controles. Até sua casa real, seu rei e sua rainha são mera fantasia. E o que seriam as fantasias senão um grande grito de liberou geral de cada um contra a hipocrisia? Alguém me disse certa vez que quanto mais exagerada a fantasia mais fantasmas o folião está expulsando no meio da folia, para serem pisoteados pela multidão. Sorte de quem se perde deles e não permite reencontros depois das cinzas.

Ai de quem insistir em não entender que a folia é apenas a parte visível e superficial de um fenômeno componente da genética da nossa sociedade. Não por menos, em dezembro de 1933 um grupo de músicos entrou em estúdio para gravar História do Brasil. A voz de Almirante estava acompanhada pelo grupo Diabos do Céu, nome sugestivo para a orquestra comandada por Pixinguinha (arranjo e saxofone). A composição de Lamartine Babo, grande sucesso do Carnaval de 1934, não deixa dúvida:

Quem foi que inventou o Brasil

Foi seu Cabral, foi seu Cabral

No dia vinte e um de abril

Dois meses depois do Carnaval

Quando o Carnaval terminar – seja lá quando for – vale rever o mestre Paulinho da Viola. Afinal, quem poderá se, um dia, o coração for consultado para saber se andou errado, negar? Será difícil! Melhor ter certeza de que foi um rio que passou na vida e o coração se deixou levar. Viva Momo e toda sua realeza!

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

Divirta-se

Dancin’ Days   https://www.youtube.com/watch?v=NDPhClCghmY

História do Brasil   https://www.youtube.com/watch?v=kzl7bfOl4wI&t=5s

Foi um Rio que Passou em Minha Vida   https://open.spotify.com/track/7mkvi46DO25BAkcD9OWrpz?si=d93d3abc09f24340

Bum Bum Paticumbum Prugurundum   https://open.spotify.com/track/7k19wJiFlYCzH52eVcnOp4?si=90dd3a875ea74565

Dancin’ Days (áudio extendido)   https://www.youtube.com/watch?v=BZtDGUdfhNQ

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