Por Heraldo Palmeira
Los Angeles
Nova York
São Paulo
Lisboa
Londres
Fase da Lua
.
.
17 de dezembro de 2024

HERALDO PALMEIRA Certezas incertas

Pepper Mint/Pixabay

Certezas incertas

  • Heraldo Palmeira

Além da minha mãe Antônia (Toinha) Palmeira, outras mulheres da nossa convivência familiar mereceram de mim o afeto filial por tantas bondades que me destinaram. A última delas acabou de fazer sua viagem soberana. Estou definitivamente órfão agora, mas são memórias como estas que sustentam a vida que segue

“Ser mãe é padecer no Paraíso”. Esse era o primeiro verso de uma música que tocava no rádio quando eu era criança. Eram palavras fortes, que despertavam minha curiosidade. Eu ainda não era capaz de compreender o sentido pleno daquela expressão contraditória. Muito menos que “padecer” tem sinônimos distantes de sofrimento no dicionário.

Quando aquela música foi lançada, Teresinha já era mãe de Ana Maria, Cícero Júnior, Maria do Céu e Carlos Augusto – Maria Helena chegaria no ano seguinte. E eu estava dando os primeiros passos e começando a falar. Hoje, imagino o que era ser mãe na virada dos anos 1950-1960 num rincão do país, com todas as restrições que quase todo mundo enfrentava no cotidiano de tempos tão diferentes. A frase que abria a música, mesmo vista em perspectiva, ganha sentido com menos drama, como esforço muito maior para tocar a vida numa época em que não existia a maioria das facilidades trazidas pela modernidade.

Olho agora para o passado e começo a revirar a memória para rever tempos tão especiais. A primeira coisa que me vem à mente é a amizade que existia entre as famílias da nossa pequena e adorada cidade de Cruzeta (RN). Esse era um traço comum das pequenas cidades, inclusive pela genealogia muitas vezes de origem única.

Uma riqueza que retomei de 1971 em diante, quando já morava na capital e comecei a ir passar férias escolares por lá, como um ritual quase religioso de todo início e meio de ano até 1977. Tempo em que me arranchava na casa de Tetê de Sebastião da Loja, outra que também era minha, e convivia com meus primos Alberto Jorge, Marcelo, Múcio e Titica Grandona – porque havia a Pequena, amiga de todos nós –, num processo de descobertas deslumbrantes daquele rito de passagem em que a gente fica tonto de encantamento e nem percebe a divisão entre infância e adolescência – num piscar de olhos, “Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia”.

Voltar às origens era uma revisão dos afetos primordiais. Eu era acolhido como filho em diversas casas. Não precisávamos inventar palavras para tratar os donos e seus filhos, eles eram naturalmente como nossos pais e irmãos por extensão da amizade que unia nossas famílias. Tanto que era comum os filhos de uns irem do interior morar nas casas de outros que haviam mudado para a capital, maneira de seguir os estudos.

Teresinha e Dedice Góes abriram as portas e seus corações com entrada livre para minha alma de criança em férias. E eu sempre me senti em casa naquela casa, havia nela um componente definitivo e apaixonante: a alegria. Ali eu pude me encantar com a brandura de Dedice, o Véio, e a energia “modelo 380 volts” de Teresinha. No melhor sentido, a Veinha era alta tensão!

Mulher culta, professora orgulhosa do seu ofício, movida por curiosidade e generosidade para ensinar, adorava uma boa prosa a respeito de qualquer coisa, quase tudo era instigante ao seu redor. Algo me diz que seus alunos quase pisavam o território de filhos. No fim das contas, aquela vida era um tipo de paraíso e ela “padecia” muito bem nele.

Aí, um tal de destino e a busca por um futuro melhor se juntaram para levar embora a família toda. Naquele começo de ano de 1973, logo depois do almoço do sábado 27 de janeiro, toda a família entrou na kombi branca depois de se despedir da padroeira Nossa Senhora dos Remédios em sua matriz. Estavam abençoados para partir. A calçada estava cheia de amigos para o último adeus e muitos olhares se cruzaram com tristeza. Houve lágrimas dentro e fora do carro quando tomaram o rumo da minha Acari, cidade vizinha e irmã siamesa de Cruzeta, entrando na longa estrada que os deixou definitivamente em Brasília ao cabo de cinco dias de viagem.

Nos anos seguintes e ao longo do tempo não foram poucas as vezes que lembrei daquela cena sertaneja. Era o retrato da vida, da vida sem cenografia, a real que vale a pena e que a gente aprendia naquelas casas que pareciam uma só. Quando visito o coração apertado de menino impotente diante da despedida no átrio da matriz, ouço a voz poderosa de Seu Lua desenhando a viagem dolorosa escrita (letra e música) por Patativa do Assaré:

O carro já corre

No topo da serra

Olhando pra terra

Seu berço, seu lar

(Meu Deus, meu Deus!)

Aquele nortista

Partido de pena

De longe inda acena

Adeus meu lugar

(Ai, ai, ai, ai)

E assim vão deixando

Com choro e gemido

Do berço querido

Céu lindo e azul

(Meu Deus, meu Deus!)

Ali, na triste partida, podia ter sido aberto o caminho para nunca mais. Mas havia um afeto quase consanguíneo, repleto de sertão, que nunca tem fim. Como a caatinga que renasce depois da seca. O corte do tempo me apanhou em 1992 diante dos mesminhos motivos: o tal de destino e a busca por um futuro melhor me levaram a trabalhar em Brasília.

Um simples telefonema levou o Véio em seu opalão branco para me esperar no aeroporto. Por uma dessas coincidências – será mesmo? – da vida, nós a caminho de casa, no rádio do carro sintonizado na querida Rádio Nacional FM tocou o então novíssimo fruto das notas e tintas de Djavan e Caetano Veloso:

Luz das estrelas, laço do infinito

Gosto tanto dela assim

Esse imenso, desmedido amor

Vai além de seja o que for

Passa mais além

Do céu de Brasília, traço do arquiteto

Gosto tanto dela assim

À chegada, todos os abraços apertados, a saudade atualizada, a identidade que nunca foi perdida, e já havia pronto a me esperar um quarto de filho na casa querida. Foram três meses inesquecíveis – tempo mais do que suficiente para finalmente eu me instalar na cidade, apesar dos protestos pela mudança “prematura”.

A partir dali, não houve mais Dedice e Teresinha para mim, apenas painho e mãinha, no melhor linguajar do coração nordestino de filho acolhido. Um tempo extraordinário em razão daquela convivência enfeitada por bondade, grandeza, piadas, chistes, palavrões falsamente disfarçados e uma danada de uma galinha torrada sem parelha! Que sabor era aquele, meu bom Deus? Acho que nem Nossa Senhora conhecia o segredo!

Era uma casa onde os problemas sumiam envergonhados com o dom de sorrir que morava nela. Os filhos espalhados, quando chegavam, instalavam tamanha folia que parecia a recompensa pelo tal padecer no paraíso.

A minha sina cigana me levou para outros destinos, mas estávamos escolados e driblamos a distância. Trocávamos textos, falávamos ao telefone para dizer nossas besteiras e caíamos na gargalhada. Nos últimos tempos, as dificuldades de visão da nossa Veinha colocaram Ana Maria e Júnior nas leituras e prosas. Ela tinha o dom de ser e nos fazer felizes.

Enquanto estava aqui rabiscando estas doces lembranças, o danado do rádio – sim, continuo ouvindo rádio até hoje, mesmo que seja por estes meios metidos a besta com nomes estrangeiros – jogou no ar Aquarela, a maravilha construída ao longo de muitos anos, primeiro na Itália por Maurizio Fabrizio e Guido Morra, depois complementada (com letra em português e algumas adaptações) no Brasil por Toquinho e Vinícius de Moraes. Fiquei pensando no tempo superlativo que vivi na casa que aquela mulher generosa me deu de presente.

Fui ouvindo a letra, os olhos marejando porque descobri que ela era o mapa daquela nossa casa onde a gente podia tudo que fosse bom. Na verdade, aquela mulher generosa me deu uma fresta de infância em plena vida adulta.

Numa folha qualquer

Eu desenho um navio de partida

Com alguns bons amigos

Bebendo, de bem com a vida

De uma América a outra

Eu consigo passar num segundo

Giro um simples compasso

E, num círculo, eu faço o mundo

Mãinha, quase acreditei que sua suavidade tinha impregnado esses versos e eles tentaram compreender minha saudade de você. Quase me disseram que as chegadas e partidas passam a vida tentando nos ensinar que tudo é provisório e transitório – e a gente não consegue aprender. Quase descreveram como fácil algo sempre tão difícil.

O danado é que essa última versão da música quase não foi lançada porque não tinha refrão – quem danado precisa de refrão? E chegou ao mundo em 1983, exatamente no ano em que deixei nosso torrão em busca de viver no Rio de Janeiro. Dez anos depois, eu renovava aquela partida que testemunhei no átrio da matriz de Remeidinho. Coincidência que cada movimento da vida tenha uma música enorme? Sei não!

Pensei a respeito de você ter feito sua viagem soberana exatamente no dia em que se completavam 71 anos do casamento com seu grande amor. Pensei que ninguém chega aos 95 anos em plena lucidez à toa. Pensei que você resolveu renovar seus votos com o Véio e, para não deixar barato, combinou com o Criador que Ele, em pessoa, fosse o oficiante da cerimônia. Bem a sua cara! Só espero que não tenha inventado de usar vestido de noiva.

Guarde as fotos para quando tudo for eternidade eu rever esse reencontro de Toinha, Licó, Severina, Tetê, Ubaldina, Cordélia, Vicência, Zélia e você, mulheres que foram mães para mim.

Nosso tempo agora é outro. A gente não se vê, mas se percebe. Afinal, não há apagador capaz de retirar marcas da alma. É claro que estou triste, mas prefiro lembrar das nossas “doidices”, como você chamava. E trate de arranjar com o Criador – com quem você agora tá assim, ó! – o direito de seguir velando por nós, seus tantos filhos que seguem por aqui.

Nunca deixe de me dizer “Menino doido, tenha juízo!”. Eu vou saber ouvir sua voz e entender que estou fazendo as coisas certas com toda aquela anarquia que a gente adorava. Seu filho saudoso.

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

Ouça as músicas citadas no texto

Ser Mãe   https://www.youtube.com/watch?v=bc5hj1Svxx8

Como uma Onda (Zen-surfismo)   https://open.spotify.com/track/2RBGbLDceAHxJ0w2Pfxnzn?si=6619dcd824824512

A Triste Partida   https://open.spotify.com/track/0qeQ7o51luJtqYEHXo9PF4?si=c88051ad21d34650

Linha do Equador   https://open.spotify.com/track/51K301CKuavVEP7A9vsUaz?si=3775366c6c1a4c8f

Aquarela   https://open.spotify.com/track/4LhxdvP3lfgH3ciOyO1BX1?si=674768ad136d4dec

©