Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA Laços de ternura

Gregor Ritter/ Pixabay

Laços de ternura

  • Heraldo Palmeira

A mulher miúda era jovem quando chegou a Brasília. Naquele tempo, o lugar ainda era muito mais um grande acampamento, um esboço distante de qualquer coisa parecida com cidade instalada. Reinava certa desorganização, mas as pessoas que chegavam ao planalto Central do Brasil tinham certeza de haver encontrado o eldorado.

A mulher miúda era até atraente, tinha lá seu charme brejeiro. Em pouco tempo entrou num nicho profissional que movimentava muito dinheiro e era dos mais tradicionais em qualquer ponto do país: a venda de joias de mão em mão. Um tipo de negócio que prosperava alimentado pelo insumo inesgotável da vaidade, ainda mais quando o lustro do poder fazia circular muito dinheiro.

Mesmo com todas as suas precariedades, Brasília já abrigava um robusto mercado consumidor. Mulheres que desejavam conceder-se alguma recompensa por terem ido viver num lugar que oferecia basicamente vastidão, poeira e solidão. Homens sempre gentis e prontos a impressionar amores legítimos ou clandestinos.

A clientela era formada principalmente pelas funcionárias públicas, o que levou a mulher miúda a conhecer todos os labirintos da Esplanada dos Ministérios e dos prédios das autarquias e demais repartições. Nos finais de semana ziguezagueava pelas superquadras em busca das esposas que não trabalhavam fora.

Quando ela chegava com aquele pano flanelado azul ou vermelho em formato de cilindro, repleto de cordões, pulseiras, brincos, medalhões, pingentes e anéis desembrulhava sopros dourados e prateados de alento. Uma espécie de mescalina oftalmológica. Aqui e ali tomava um cano, era um dos riscos do negócio. Mas aprendeu logo a estabelecer limites de vendas por cliente e a fazer reserva financeira para cobrir as fatalidades. E teve a sorte de nunca ser assaltada.

Nem bem tinha completado dois anos em Brasília, apaixonou-se pelo representante de negócios de uma multinacional. A sede brasileira da empresa ficava em São Paulo, mas o fulano dispunha de escritório bacana montado no Setor Comercial Sul da nova capital. “Para facilitar os negócios”, ele costumava dizer. Como vivia viajando de avião entre as duas cidades e tinha até ar refrigerado na sala, ela tinha certeza de que ele era um homem muito importante.

Não fazia perguntas e visitou o namorado uma única vez no trabalho, mas a secretária não comprou nada. Um dia, o sujeito não retornou mais e a mulher miúda teve um pressentimento estranho. Num telefonema ao escritório que ele chefiava, soube que seu homem era casado, tinha dois filhos pequenos e morrera de câncer. Mal se refez do golpe, descobriu-se grávida daquele amor improvável. Tinha vinte e cinco anos quando deu à luz um menino. Ficou devastada com o diagnóstico de paralisia cerebral que acompanhou o bebê para casa.

A partir daí ela dedicou todas as forças ao seu menino. Não tinham parentes em nenhum lugar, lembrava vagamente de ter ouvido a mãe, agora falecida, falar de um tio que havia migrado para a Amazônia no tempo da Segunda Guerra e nunca mais dera notícia.

Sobraram apenas os dois, era um pelo outro e ninguém mais. Os tempos mudaram muito, tirando do mercado aquele negócio de vender joias de mão em mão. A sorte é que os anos em corredores públicos garantiram certa visibilidade, a ponto de um senador ficar compadecido e transformar a mulher miúda numa espécie de faz-tudo extraoficial do gabinete. Desde então é assim, às migalhas, que obtém o sustento dela e do filho.

Acabou de completar 75 anos e recebeu diagnóstico de câncer. Os médicos indicaram cirurgia. A mulher miúda, agora grisalha e ainda mais miúda, está vivendo o maior dilema de sua vida: fazer ou não a cirurgia. Tem medo de morrer, não pelo simples medo da morte. Sabe que, morrendo, estará condenando à morte seu menino, que acaba de completar 50 anos.

É claro que ela entrou em pânico, já que não há parentes e ninguém, além dela, para cuidar do grande parceiro agora homem feito. Para fugir do desespero tem reforçado suas orações, clamando pela misericórdia Divina. Não ousa pedir para continuar vivendo; não quer de forma alguma incomodar Deus com uma bobagem dessas. Seu desejo ardente é que o Todo-Poderoso leve seu menino um pouquinho antes dela. Aí sim, sente-se em condições de morrer em paz. E até já tranquilizou o Criador de que continuará velando pelo seu amor na eternidade.

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

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