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Música, música
- Heraldo Palmeira
Música, música/Companheira do quarto dos rapazes/Entre revistas e fumaça/Confidente do quarto das meninas/Entre calcinhas e sandálias/Música, música/Farol na cerração dos grandes medos/A força que levanta os bailarinos… (Sueli Costa-Abel Silva)
Eu era apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso quando Música, música foi lançada. Sua letra logo me chamou a atenção por ser uma forma pouco usual de falar de música e da sua presença na vida das pessoas. A entrega foi preciosa juntando o arranjo de Gilson Peranzzetta, a voz de Simone e a guitarra de Sérgio Dias, o grande ex-Mutantes – e ainda tem, no finalzinho, uma pitadinha incidental no piano de Peranzzetta de Jura Secreta, escrita também por Sueli Costa e Abel Silva e um megassucesso de Simone.
Aliás, ler a ficha técnica daquele álbum é uma preciosa viagem no tempo. Estão listadas mais de uma centena de pessoas que faziam diferença. Algumas ainda estão por aí jogando bonito, apesar do anonimato a que o mau gosto condenou a própria música brasileira.
Era 1980, meus vigorosos 20 anos. Tantos sonhos. Bons tempos! Os discos de vinil chegavam como uma festa onde a gente se punha a ouvir coisas bonitas e “rever amigos” cujos nomes estavam nos encartes. Sim, aquele ritual tinha importância realmente, contaminava nossas almas de forma definitiva.
Hoje, eu me peguei pensando quando foi que o primeiro humano teve noção de alguma sonoridade e percebeu que era mais do que apenas um dos muitos sons ao redor, que poderia se somar a outros e virar algo que se tornasse tão definitivo e precioso.
Como terá sido a primeira manifestação musical? Imagino que tenha acontecido muito tempo antes do primeiro registro histórico. Consta que os homens pré-históricos somavam o som dos movimentos corporais aos sons vocais. As pinturas rupestres registradas nas cavernas sugerem pessoas em movimentos de tocar instrumentos, cantar e dançar. Os arqueólogos também encontraram fragmentos que indicam a existência de instrumentos musicais primitivos. Permanece a dúvida crucial a respeito de quem surgiu primeiro: as vocalizações ou os sons rudimentares, muito provavelmente percussivos.
Esse mistério nos conduz pelas divisões que passamos a conhecer mais amplamente com a chegada da modernidade, tendo a música erudita europeia como a primeira grande matriz cosmopolita, provável resultado direto do poderio econômico capaz de gerar uma produção espetacular e espalhá-la pelo mundo por meio de mecenas, reinos interligados pelos laços das famílias nobres e reprodução de partituras.
O século 20 alargou todas as fronteiras a partir do caldeirão múltiplo da música norte-americana, que brotou do fervor das igrejas, das dores das plantações de algodão e da explosão dos night clubs com suas orquestras e seus bambas. Toda essa força criativa viajou pelo mundo a bordo do vinil, rádio, televisão e cinema seduzindo e influenciando a cultura popular contemporânea.
A fonte foi generosa e em pouco tempo tudo explodiu na força de rapazes cabeludos e moças descoladas, com vozes transmutadas do conformismo para o inconformismo, vestidos em roupas exóticas e fazendo as mesmas bases harmônicas e guitarras do gospel, blues e jazz cuspirem o fogo sagrado do rock, que atravessou o Atlântico e ganhou eco no reino de Sua Majestade – espertíssima, Elizabeth II tacou medalhas de nobreza no peito de seus maiores artistas.
Depois veio a maturidade e esse caldo foi ganhando fusões, dando origem ao pop, adornado por sonoridades cada vez mais amplas fornecidas pela tecnologia embarcada em estúdios e palcos do mundo. Passo seguinte, essa tecnologia foi miniaturizada, entrou em quartos solitários e tudo parecia possível a todos.
Talvez tenha passado por aí uma perigosa estrada que parecia sem fim, que fazia crer que qualquer um podia ser músico, cantor e produtor ao mesmo tempo, estar na antessala da celebridade fácil. Isso fez cair e muito a qualidade da produção. Se falarmos do Brasil, basta olhar a parada de sucessos, onde gente pouco expressiva se arrasta e se engana em brilho efêmero que não deixa memória. São “artistas” que promovem o espancamento público da língua tão linda que falamos com suas “obras” recheadas de grosserias, muito provavelmente resultado da incapacidade de compreensão do belo. “Artistas” que não estão contidos no substantivo, apenas arranham o adjetivo sem qualquer proximidade etimológica com a arte.
Ainda bem que as ruas do mundo estão cheias de pepitas de fogo, que vão sendo garimpadas para entrar por nossos ouvidos como uma liturgia sagrada capaz de renovar a fé na boa música. Não é de hoje que acredito que a arte sempre resgata a humanidade com artistas substantivos. Faça sua aposta.
Dei uma passadinha naquele 1980, a lágrima descendo em paz, uma pitadinha de saudade que chegou companheira e confidente. Música, música!
*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural
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