Adrian Malec/Pixabay
Olhar perdido
Heraldo Palmeira
O paulistano convive com seus brigadeiros famosos sem confusão. Só chama de brigadeiro a avenida Brigadeiro Luís Antônio, a rua comprida que um dia, junto com a avenida Santo Amaro, formava a antiga estrada de Santo Amaro. Hoje, liga a região da praça da Sé às franjas do Parque do Ibirapuera. Subindo a ladeira onde estavam os teatros que agitavam a vida cultural brasileira nos anos 60 e os magazines de eletrodomésticos que marcaram época. Cortando sem dor o Bixiga e as avenidas Paulista e Brasil pelo meio. Passando diante do local onde o imigrante português Valentim Diniz criou a Doceria Pão de Açúcar (1948) e virou uma rede de supermercados gigantesca. Dando de cara com o Monumento dos Bandeirantes. Seguindo adiante por mais um trecho até morrer sem epitáfio num conjunto de engrenagens urbanas que seguem suas vidas – basta atravessar e fazer o percurso inverso que ela renasce. Tudo isso homenageia o brigadeiro que foi um dos maiores latifundiários do estado, num corredor da vida comum.
A outra Brigadeiro, chamada apenas de Faria Lima em homenagem ao prefeito que iniciou sua construção nos anos 60, hoje rivaliza com a avenida Paulista como centro de negócios repleto de edifícios imponentes, ligando os bairros de Pinheiros e Vila Olímpia. Está no extremo econômico da riqueza e não se acanha de ostentar essa condição – o shopping mais quatrocentão da cidade, escritórios que beiram a ficção, um clube exclusivo de milionários, restaurantes da moda e muitos outros signos do alto custo.
O trânsito na Brigadeiro estava pesado como de costume. Fiquei retido num farol – como os paulistanos denominam seus semáforos – do ladeirão, comprovando que os motoristas evitam mesmo fechar os cruzamentos para não piorar ainda mais o trânsito caótico. Claro, sempre há algum espírito de porco na horda metropolitana, é típico da espécie, mas esses contam de menos.
Do outro lado da rua, na pista de descida pós-Paulista, um daqueles enormes ônibus biarticulados, lotado, absolutamente inerte como tudo ao redor. Talvez uma chuva fina que ora caía ora sumia fosse a causa. Dentro dele, colado numa das janelas meio embaçadas pela diferença das temperaturas de dentro e de fora, um rosto paralisado fitando o nada.
Não havia qualquer mensagem naquele rosto; não havia nenhuma! Apenas o retrato de uma metrópole que obriga seus moradores a acordar de madrugada, enfrentar deslocamentos imensos e lentos todos os dias no caminho da sobrevivência. Que cria aquele tipo de máscara impressionante, quase comovente. A face de vidas sem sentido, sem esperança, sem futuro. A face do vazio que nenhuma faixa exclusiva, corredor de ônibus ou via expressa modifica.
O carro finalmente andou. Logo adiante, uma Alameda Santos dobrada à direita e menos congestionada serviria de rota de fuga para o meu compromisso no Paraíso. Pensei em mim dentro daquele táxi guiado por um senhorzinho de conversa agradável, ar condicionado, boa música, conforto. Pude perceber que tenho atravessado a vida com um pouco mais de razões para a motivação que não havia no rosto daquela mulher do ônibus que seguiu ladeira abaixo no rumo do Ibirapuera.
Fiquei atento aos cruzamentos que se seguiram no meu trajeto, imaginando o que aquelas tantas pessoas que se moviam apressadas buscavam em seus motos-contínuos cotidianos. O meu silêncio foi ficando incômodo, pois também me peguei pensando a respeito do sentido do meu próprio moto-contínuo.
Quando surgiu na minha cabeça a velha pergunta “Quem somos, de onde viemos, para onde vamos?”, vi que estava na hora de reestimular a prosa com o taxista. Nada melhor do que jogar conversa fora! O resto é destino. Ou não.
*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural