Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA Santas águas

Aline Suerda

Santas águas

  • Heraldo Palmeira

Eu tenho um açude desde menino. Não, eu não mandei construir um açude nas minhas terras porque nunca tive terras. Eu tenho um açude dentro de mim, que faz parte da minha vida. É o açude da minha terra, e eu cresci na minha terra com este açude ao redor. Além de tudo, meus pais, Nemésio e Toinha Palmeira, eram funcionários públicos e trabalharam com orgulho na administração dele.

Gargalheiras é um subtítulo nobre de Acari e uma espécie de sobrenome de família para quem nasce neste pedacinho de chão do Seridó potiguar. Nos tempos novos metidos a modernos em que vivemos, onde tudo “deve ser” midiático, já lhe deram o apelido de “Gigante”. E cabe.

Depois de 13 anos de seca, nunca se viu tanta gente peregrinando até Acari para testemunhar o Gargalheiras mais uma vez explodindo em vida. São quase 42 estádios do tamanho do Maracanã repletos de água. Independentemente do porte da sangria – hoje temos uma lâmina ao redor dos 30 centímetros –, o transbordo traz junto a promessa de quatro anos de segurança hídrica.

Bem lembrou Chaguinha de Gabriel, meu primo querido na linhagem dos Araújo Cananéia, que toda essa movimentação impressionante pode ser explicada de forma simples: é a primeira vez que o Gargalheiras sangra depois que a sociedade se tornou patologicamente dependente das redes sociais. Como não poderia ser diferente, deu-se o frenesi de imagens, comentários, disputas oportunistas constrangedoras… Não faltou gente tentando parecer intermediária do milagre das águas no sertão. É a raça humana! – já dizia o poeta, “A raça humana é uma semana do trabalho de Deus”. Quem sabe se o Criador tivesse dedicado mais uma semana…

Num piscar de olhos a sangria do Gargalheiras virou assunto nacional, pauta de telejornais importantes. Tempos muito diferentes daqueles em que a gente ia ver o espetáculo como programa de família e raramente tinha alguém batendo foto. Quando muito, os cliques de Zé Duda, Jomar, Joadi, Perneta, Milton Lopes, Inácio de Gedeão e Valtinho, fotógrafos oficiais da nossa simplicidade interiorana.

Os arautos midiáticos deram de chamar tudo isto de momento histórico. Talvez por nunca terem visto tanta gente junta na cidade. Talvez por ignorarem que a sangria de 1985 gerou uma gigantesca lâmina de 2,80 metros acima da parede da barragem – põe histórico nisso, a maior de todas foi também assustadora, uma prova de fogo para o colosso de concreto armado que represa tanta água e segue impassível na missão.

A sangria do Gargalheiras tem respingos na infância. Uma época sossegada, sem redes sociais, em que o espetáculo das águas era comunicado oficialmente por memorando interno do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), pelas cartas dos moradores contando a novidade ou misturado na prosa dos viajantes que zanzavam entre as pequenas cidades da região. A notícia se espalhava e as famílias vinham admirar o “véu de noiva”, como se chegassem em busca de uma bênção das santas águas descendo como sinal de fartura.

A seca que maltrata a vida sertaneja também ensina resiliência. E o prêmio da nossa resistência é ver o “véu de noiva” lavando a parede do açude. Desde a inauguração em 1959, já são 30 sangrias com o mesmo sentimento de fé, gratidão e esperança. Renascemos a cada uma delas, feito caatinga esturricada que vira mato verde no passe de mágica da chuva. Somos a letra da poesia do querido professor Canindé Medeiros:

“Vi Gargalheiras na lama | Que coisa pra lamentar! | Andei pelo rio seco | Pra ver as pedras e chorar: | Deus mandou chuva e alegria | E daqui pro final do dia | O Gigante vai transbordar!”

No fim daquela mesma noite as águas começaram a descer. A natureza acabava de operar um verdadeiro milagre, porque 45 dias antes o caos hídrico estava instalado naquele fiapo de lama que restava no reservatório – a mesma imagem desoladora registrada anos antes pelas câmeras do filme Bacurau.

Hoje, no meio de tanta festa, devemos lembrar que a sangria do açude foi um daqueles milagres onde a natureza ganha o mérito pela presença invisível da mão de Deus. Hora de agradecer a quem de direito, sem esquecer de incluir a padroeira Nossa Senhora da Guia e o glorioso São José sempre ligado às chuvas pela fé sertaneja. Hora de agradecer como cabe a um verdadeiro filho de Deus.

São Paulo, 7 de abril de 2024

Heraldo Palmeira, filho de Deus nascido em Acari

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

Trecho incidental A Raça Humana (Gilberto Gil)

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