Por Heraldo Palmeira
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23 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA Barba feita

Edifício Maletta/Reprodução/Amira Hissa (PBH)

Barba feita

  • Heraldo Palmeira

Fui remexer em arquivos com fotos antigas, naquela enésima tentativa de organizar as coisas nas pastas certas – até os computadores inventaram seus armários intermináveis; ao menos não ficam encostados pelas paredes da casa. Ali estavam alguns registros que fiz numa das minhas muitas passagens por Minas Gerais. Senti saudade daquela manhã especial que tive em Belo Horizonte, aproveitando uma folga na agenda de trabalho.

Era um dia de maio de 2009. O sol reaparecera finalmente. Saí do hotel ainda sonolento e fui ao Edifício Maletta, que acabara de completar 50 anos dominando a cena na esquina da rua da Bahia com a avenida Augusto de Lima, centrão da cidade. O prédio foi construído no local em que funcionou o famoso Grande Hotel.

O estabelecimento abriu suas portas em 6 de agosto de 1897, quatro meses antes da inauguração da nova capital dos mineiros. Em 1918 foi comprado por 300 contos de réis pelo italiano Archangelo Maletta, empresário tarimbado do ramo hoteleiro que comandou o negócio de 1918 até sua morte em 1953. Hospedou em seus 52 quartos todas as personalidades que visitaram a cidade na primeira metade do século 20 – gente como Rui Barbosa, Olavo Bilac, Oswaldo Cruz e Getúlio Vargas. Também foi ali que Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade e o escritor suíço Blaise Cendrars se encontraram com os representantes do Modernismo mineiro, e Mário de Andrade foi à sacada declamar os versos de Noturno de Belo Horizonte, que acabara de criar.

…Dorme Belo Horizonte/Seu corpo respira de leve o aclive vagarento das ladeiras…/Não se escuta siquer o ruído das estrelas caminhando…/Mas os poros abertos da cidade/Aspiram com sensualidade com delícia/O ar da terra elevada.

Há quem garanta que Orson Welles também ocupou um dos aposentos quando passou pelo Brasil, e que, em 1940, o prefeito Juscelino Kubitscheck almoçou com Oscar Niemeyer no hotel e encomendou o colossal conjunto arquitetônico da Pampulha.

Com a morte do proprietário, o prédio do hotel foi vendido à Companhia de Empreendimentos Gerais, que em 1957 demoliu a antiga construção para dar lugar ao Conjunto Archangelo Maletta, inaugurado em 1961 e até hoje tido como um dos prédios mais amigáveis da cidade. Apesar de castigado pelo tempo e pelas mudanças sociais, continua abrigando um dos cenários mais interessantes da vida cultural de Beagá.

O Maletta foi erguido já antecipando a ideia de shopping centers misturados com flats. A área comercial conta 19 andares e quase oitocentos espaços comerciais – salas, lojas e sobrelojas. A parte residencial está espalhada em 31 pavimentos, abrigando perto de 1.500 moradores. Além das famílias que compraram seus apartamentos na planta, estudantes montaram repúblicas e todos vivem em harmonia.

Sua galeria ostenta a primeira escada rolante de Minas Gerais, inoperante há anos e sempre sob promessa de reparo, além da maior quantidade de sebos por metro quadrado de que se tem notícia nas alterosas. Abriga o ir e vir de quem mora, trabalha ou frequenta o edifício, uma fauna variada que junta pessoas comuns, universitários, boêmios, artistas, intelectuais e formadores de opinião. Não surpreende a imprecisão dos números daquele formigueiro humano de todos os dias. Dependendo temperamento de quem conta e do sistema utilizado, variam de 5 a 20 mil passantes. Tem cheiro de aposta em loteria, algo tão ao gosto dos mineiros.

Na verdade, o Maletta é uma grife, um estilo de vida que segue vencendo com garbo o ar decadente que se mistura ao cheiro de gordura que sai dos bares e restaurantes – a joia da coroa é a Cantina do Lucas, que parece ter parado no tempo desde que abriu as portas em 1962 e terminou tombado em 1997 pelo patrimônio histórico e cultural da cidade. Outro registro especial da casa está no Guinness Book, onde consta que o santista filho de espanhóis Olympio Perez Munhoz é o garçom que permaneceu mais tempo em atividade no Brasil – trabalhou desde a abertura, morreu em 2003 e hoje está homenageado no cardápio com o Filé Olímpio. Ele também já havia recebido o título de cidadão honorário de Belzonte.

“Lá se vão os anos, mas o Lucas continua a ser um bar atemporal, em termos de qualidade de comida, da bebida sempre confiável e da atenção e carinho de quem nos serve. É um refúgio para quem gosta da noite e de uma conversa inteligente”, derreteu-se o compositor Fernando Brant no livro Histórias da Rua da Bahia e da Cantina do Lucas de Brenda Silveira e Luiz Otávio Horta.

A galeria é território boêmio que se renova até hoje pelas memórias dos tempos em que abrigava nas mesas de seus inúmeros bares – não é à toa que Belo Horizonte é considerada a capital dos botecos – frequentadores ilustres como o próprio Brant, os outros rapazes do Clube da Esquina e gente de todos os segmentos artísticos. Não causava surpresa encontrar por lá Milton Nascimento, Murilo Rubião, Nivaldo Ornelas, Paulinho da Viola e Wagner Tiso, para citar apenas alguns. Também foi uma espécie de palco pioneiro onde as mulheres podiam chegar desacompanhadas e pedir cervejas e cigarros livres de qualquer preconceito, “sem que ninguém as tomasse por prostitutas” como me disse um dos garçons.

Nos tempos do governo militar a galeria era mural de liberdade, onde Seu Olympio marcou época protegendo os frequentadores esquerdistas – que eram a grande maioria dos clientes – dos agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) que infestavam o local em missões de espionagem. “Julgavam-se anônimos. Mas eu fazia a contraespionagem”, orgulhava-se numa de suas frases mais famosas. Contestador por excelência, detestava a burrice e os chatos, a ponto de suportar apenas os bêbados dignos de respeito intelectual – quem não passasse nesse crivo pessoal era convidado a procurar rumo. Outro dos seus orgulhos compreensíveis era a amizade com Santos Dumont, com quem mantinha conversas habituais.

Saracoteando por tantas riquezas humanas espalhadas no ar entrei no Salão Máximo, que dominava a cena da galeria. Como a agenda apertada me deixara com uma barba por fazer de muitos dias, busquei os cuidados de Maciel, proprietário do lugar, e embarquei por uma espécie de viagem no tempo. Aos 73 anos, morador de um dos apartamentos do Maletta, o velho barbeiro era um retrato de maestria no ofício que escolheu ainda moço.

Espichado confortavelmente numa das seis daquelas enormes cadeiras de barbeiro de antigamente – “já foram sete”, ele me disse – fui sendo brindado com um desfile de cremes e toalhas quentes e frias em branco imaculado. A mão de seda daquele homem fazia a lâmina deslizar quase transcendente pelo meu rosto.

Falamos de profissões como aquela, que foram desaparecendo com o tempo, dos escândalos políticos do dia, até chegar o momento do arremate final com uma das inúmeras loções disponíveis. Não sem antes Maciel me pedir para escolher entre loção que queima pouco ou que queima muito. Também havia a possibilidade do álcool puro e simples, direto, pancadão. Preferi “fogo brando” e o creme Nívea chegou numa massagem, como última filigrana daquele fidalgo ritual.

Sempre que a cadeira voltava à posição original, Maciel oferecia seu último requinte: passava o pente no cabelo do cliente para remover o amassado causado pelo apoio de cabeça. Jogada de craque.

Barba feita, paguei a conta extasiado com a beleza e estado impecável da velha máquina registradora e me despedi prometendo voltar ao salão sempre que estivesse em Belo Horizonte. Algo que me pareceu fácil de cumprir terminou não acontecendo. Voltei à cidade algumas vezes, mas a hospedagem do Othon Palace já havia virado uma loteria e terminei optando pelo Caesar Business, no distante Belvedere. Tempos depois soube que Maciel faleceu e o lugar passou às mãos de Gil, um dos antigos profissionais da casa. Ele assumiu, modernizou e rebatizou o lugar como Salão do Gil. A clientela fiel permaneceu dividida entre advogados, engenheiros, promotores, juízes e famosos da política, arte e futebol.

Atravessei a galeria do Maletta, troquei cumprimentos com desconhecidos que já bebericavam àquela hora da manhã no Lucas – voltei à noite com amigos e jantamos um Filé Olímpio – e desemboquei na muvuca da Avenida Augusto de Lima.

Apontei minha bússola para o Mercado Central, em busca do restaurante Casa Cheia. Tradicional entre os locais, terminou virando ponto certo de turistas. Ouvira falar maravilhas de uma rabada com agrião que pontificava no cardápio da casa. E a cerveja tinha fama de estupidamente gelada.

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

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