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Um amor de criatura
- Heraldo Palmeira
Eu tinha sete anos naquele dezembro em que saí de Acari para morar na capital, boa parte da viagem trilhada em estrada de chão. A poeira levantada e pedrinhas jogadas pela rodagem do valente Jeep Willys foram diversão garantida até que o encontro com o asfalto ofereceu conforto surpreendente – até hoje me pergunto que conforto surpreendente poderia haver num jipe daqueles, talhado de fábrica para uma vida inóspita. Cheguei em Natal como deveria: um menino do interior deslumbrado com o gigantismo da capital. Sim, meu único termo de comparação de grandeza era a amada terra que ficara duzentos e tantos quilômetros para trás. Mas tudo parecia enorme, o tamanho das ruas, a quantidade de casas, prédios, lojas, carros, gente, o fascínio do elevador…
O choque das águas foi poderoso. Eu trazia dentro de mim meu açude de menino, o Gargalheiras, um monumento ao redor da cidade que fui obrigado a deixar lá no sertão. A contragosto. Afinal, meus pais trabalhavam em sua administração num escritório vizinho a uma vila de pescadores. Eu vivia cercado pelo vento úmido que virava brisa e entrava pela casa.
Boquiaberto, não sabia o que pensar diante do Atlântico, ainda mais porque tive a primeira visão dele do alto de uma pequena colina, na parte mais alta da Ladeira do Sol. Aquela quantidade de água não podia ser de verdade, ainda mais porque era salgada!
Estava apenas começando um tempo de descobertas. Para os meus pais, a modernidade de um escritório refrigerado no último andar de um prédio bonito. Para mim, a tarefa de construir novas amizades a partir da escola.
Os animais sempre fizeram parte da vida no interior. Em minha casa, apenas os gatos que chegavam e iam ficando, naquela deliciosa canalhice dos felinos de se apossarem das casas alheias dando a mínima para os humanos. Galinhas, um pato eventual e o tradicional peru natalino compunham o elenco alado num pequeno chiqueiro no quintal.
Os cachorros eram aqueles de sempre, os de algumas famílias e os da rua, todos amistosos e sem raça definida. Cães de raça eram uma miragem de livros, revistas e cinema. Não havia TV, inclusive porque o sinal não chegava naquele pedaço de mundo.
Na nova vida metropolitana descobri a televisão e uma paixão imediata: Rin-Tin-Tin, o adorável cão pastor-alemão em suas aventuras ao lado do Cabo Rusty (personagem do ator mirim Lee Aaker). Eu tinha a mesma idade daquele menino sortudo e morria de inveja dele por ter um amigo como Rinty. Também havia Lassie para aumentar o plantel canino de meu encantamento, que até ali não passava da turma de A Dama e o Vagabundo, Banzé, Pluto e Pateta [apesar do disfarce “humano”] dos meus gibis da Disney.
Nossa relação familiar nos ligava a uma família de grandes posses, em cujo quintal gigantesco viviam três cães pastores-alemães: Astor, Frend e Princesa – volta e meia, Sheik também ficava por lá quando seus donos viajavam. Eu não sei traduzir o que sentia no meio daqueles animais enormes e maravilhosos. Cabo Rusty, coitado… Só tinha um!
Tempos em que animais de estimação eram apenas isso. Criados sem esses fricotes de hoje. Uma bacia diária com uma mistura sem sal de arroz integral e coração de boi moído, servida no fim da tarde. Enquanto comiam, o reservatório era limpado e a água de beber trocada. Simples assim.
Cresci e consegui convencer minha mãe sobre termos nosso próprio pastor. Veio Lili, um dos animais mais adoráveis que conheci. Linda, dócil, educadíssima. Ficou pouco tempo conosco, foi roubada, deixando uma tristeza daquelas. Deu tempo de namorar o campeoníssimo Baretta – que um amigo trouxera de Portugal – e nos legar um filhote que marcou minha vida.
Era 1982 quando aquele bichinho nasceu no canil do nosso quintal, mesmo período que Paul McCartney estava lançando o álbum Tug of War (cabo de guerra) – eu, beatlemaníaco, ouvindo e ouvindo. Não sei por que aquela fofura já tinha cara de Tug, talvez antecipando o porte do robusto do animal magnífico em que se transformaria – e assim ficou, com a pronúncia aportuguesada, “u” com som de “u”.
A minha casa era enorme, numa rua bucólica e sem saída no bairro do Tirol. Quase não havia carros estacionados. Um ambiente perfeito para uma brincadeira que meu amigo adorava: eu jogava um coco pelo calçamento na direção dele. Impassível, aguardava a hora do bote, um só, nunca errava, e descascava o fruto rosnando. Descarregava força, fúria e reforçava a arcada dentária. Ao fim, cascas verdes ao redor, trazia aquela bola marrom na boca para me entregar como troféu.
Também aprendeu cedo que não precisava ficar latindo à toa. Não devia incomodar vizinhos ou amedrontar pessoas para impor respeito. Bastava sua presença imponente, mesmo quando estava preso no canil onde passava o dia todo. Com isso, fomos ensinados que seu latido era importante.
Aos domingos era festa completa. Saímos de casa a pé, numa formação de tropa de gente feliz. Nêgo Sidrônio, Cego Raimundo, Mudo ABC e eu. Não podia haver turma mais multidisciplinar. Ninguém precisava de mimimi para inclusão. Um negro, um mulato e dois brancos. Dois deficientes. E os animais. Todos em busca da Praia dos Artistas, ali perto.
Nego Sidrônio era nosso conterrâneo, meu amigo de infância e ajudante esporádico de minha mãe em diversos serviços gerais. Já morava na capital há algum tempo, era vigia de uma construtora, e nas horas de folga ganhava um extra fazendo pequenos serviços para as famílias que vieram do interior.
Cego Raimundo Bamba, cego de nascença, conhecia a cidade como a palma da mão e usava a bengala para ir “lendo” o terreno. Famoso vendedor da Loteria Federal da Caixa, tinha como clientela principal os funcionários do Banco do Brasil. Língua afiada, raciocínio veloz, era mestre em chistes de duplo sentido. Tocava gaita num grupo musical comandado pelo Cego Chicó para ajudar a arrumar “a verba” da sobrevivência e da pinguinha que adorava. Era comum passearmos pelo centro da cidade aos sábados, ele apoiado no meu braço, para depois almoçarmos na minha casa. Dizia a mamãe e a quem mais aparecesse que eu tinha sido promovido de funcionário do Banco do Brasil a guia de cego. Sempre inserindo o tratamento “colega” que usava a torto e a direito. E soltava aquela gaitada que parecia traduzir toda a alegria do mundo.
Mudo ABC perdera a audição ainda criança, quando fazia traquinagens no pátio da Rede Ferroviária ao lado de casa e caiu de um vagão em manobra. Virou um dos xodós da torcida do ABC e movimentava a galera quando chegava ao estádio cumprimentando a multidão na arquibancada. Todas as noites jantava na minha casa e ajudava a lavar a louça depois – era o jeito singelo de agradecer a comida e a acolhida. Assistia à novela das oito e depois atravessava a rua para trabalhar como vigia de uma clínica, garantindo que também espichava o olho atento para nossa casa. Astuto ao extremo, amarrava um finíssimo fio de náilon do passador do cinto da calça ao trinco da porta. Se alguém tentasse invadir o prédio, encontraria o baixinho com revólver em punho e pulmões capazes de fazer barulho para assustar o mais sereno dos monges.
Eu era apenas um branquelo privilegiado por ter aquelas figuras especiais como mestres de tantos aprendizados definitivos.
Solto da coleira e encostado na minha perna esquerda, sem nunca se afastar ou baixar a cabeça por qualquer motivo, Tug puxava o ritmo servindo de montaria para Meu Louro, nosso papagaio, que seguia o trajeto como “cavaleiro” agarrado pelas próprias garras na coleira do amigo. Assobiando, cantando ou aos gritos, aqui e ali enfiando o bico no pelo do pescoço do pastor para catar alguma coisa. Causando por onde passava, como qualquer papagaio – na verdade, nosso cortejo causava até em silêncio.
A operação praia respeitava algumas regras. Quando chegávamos no exato ponto onde vi o mar pela primeira vez, a praia lá embaixo estava lotada. Tug parava sem nenhum comando, era hora de eu colocar nele a coleira de segurança. Meu Louro abria as asas curtindo o vento marinho, dava risadas ótimas, subia numa baqueta de tarol que servia de poleiro nos passeios e se acomodava cheio de prosa na mão de Nêgo Sidrônio. Uma pequena argola numa correntinha prendia o pé do papagaio ao dedo do amigo. Cego Raimundo ajeitava o pequeno chapéu de feltro, cheirava o rapé, sacudia o braço do guia, entoava o seu prefixo “Vambora, colega!” e soltava a famosa gaitada. Mudo ABC dava a voz de comando para a gente iniciar a descida: “Bê, bê, bê, bê, bê…”, sempre com um sorriso encantador iluminando o rosto.
Cego Raimundo era um tirador de onda impagável. Amicíssimo de Mudo ABC, explicava a recusa para dar o braço a ele de forma impagável: “Colega, ele não fala. Se tropeçar, como é que vai me avisar para eu olhar a tempo e não cair junto?”. Claro, eu traduzia com gestos e todos caímos na risada.
Descer aquela ladeira dava vazão à nossa pressa coletiva para abrir a primeira loura estupidamente gelada no Caravela Bar, escolhida no capricho por Geovani, carinhosamente conhecido como Gordinho (sem mimimi), nosso garçom oficial – éramos clientes fidelíssimos e ele guardava para nós o mesmo lugarzinho naquele consagrado boteco pé de areia, de mesas ao ar livre. Nem preciso falar do encantamento das crianças com Tug, Meu Louro naquela dupla improvável. Não raro, estavam todos brincando.
Tug e eu entramos juntos na juventude. Eu virei uma criatura da noite, conheci a melhor boemia e suas delícias, inclusive no cenário cultural. Ele ficava em casa guardando a adorável casa de mulheres onde cresci desde a morte do meu pai. Passava a noite deitado no alpendre interno numa posição estratégica que lhe permitia dominar o movimento da rua, os quartos e o quintal. Quando era noite de chegar pelas altas horas, lá estava ele de pé ao meu menor sinal. Sem qualquer barulho, apenas ali ao lado enquanto eu não me recolhia.
Fico olhando o quintal e imaginando-o por aqui. Estaria deitado sob o beiral da porta aproveitando a sombra e respeitando nossa convenção doméstica de jamais entrar na casa, algo que nunca desrespeitou. Ele era um amor de criatura, uma espécie de lorde canino que nunca perdeu o foco da função de cão de guarda.
Não aceitaria essas frescuras vexaminosas de pai, mãe, avós, titios ou tutores humanos. Era apenas o filho de Baretta e Lili, dois magníficos exemplares da raça pastor-alemão. E sempre teve dono, porque foi criado como animal de estimação. Ele se sentiria ofendido se fosse chamado de pet.
Vivemos uma relação adequada e tão forte que, de vez em quando, quase me pego chamando-o pelo nome só por saudade, vendo a hora reaparecer correndo pelo quintal aquele amor de criatura que virou um companheiro inesquecível, sempre pleno de amizade, lealdade e boas maneiras. Eu fui embora para o Rio, ele ficou. Nos víamos quando eu voltava de férias ou sempre que podia voltar. Remendávamos assim nossa separação. Ele se foi, eu não estava. Por isso, sua presença se mantém tão preciosa.
*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural
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