Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA Vem, Maria Eduarda!

FotoshopTofs/Pixabay

Vem, Maria Eduarda!

  • Heraldo Palmeira

Era uma manhã fria e apressada do cotidiano. A menina devia ter seus oito anos, no máximo. A mãe e a avó, conversando animadamente, desciam a escada rolante que levava à garagem do supermercado. Lá em cima, a menina ficou naquela brincadeira perigosa de descer pelo lado da escada que está subindo, obviamente incomodando os outros clientes que precisavam driblar a pestinha para seguir caminho.

Mãe e avó ignoraram solenemente o bom senso natural e todos os avisos para não deixar crianças sozinhas na escada rolante e, apenas quando chegaram lá embaixo, se deram conta de que a menina ficara no topo entregue à tarefa de vencer pela enésima vez seu desafio infantil. Pararam os três carrinhos repletos de compras exatamente naquele local onde a esteira se encontra com o chão firme, em que todos precisam ter um pouco mais de atenção e passagem livre para não cair.

As duas mulheres deram início a um verdadeiro ritual de clamores para que a criaturinha descesse até elas. Mamãe invocava seu rol de compromissos, enquanto vovó oferecia uma série de recompensas quando chegassem em casa.

Tudo indicava que a senhorinha rezava naquela bíblia em que pais educam e avós estragam, doutrina absurda que tantos idosos hoje em dia praticam se vangloriando, sem levar em conta as consequências dessa “virtude” para a vida futura dos pequeninos que estão doutrinando.

A menina, impassível na sua olimpíada particular, avisava que iria daí a pouco, naquele tradicional e insuportável “Já voooou!”. Outros clientes começaram a quase trombar com a pequena frota de carrinhos deixados no ambiente de saída da escada e, enfezados, tiveram de mover uma palha para retirá-los a tempo de evitar o acidente iminente.

A mídia não cansa de publicar matérias a respeito de crianças e adolescentes ditadores. Dá até para desconfiar que toda criança nasce como um carro standard e seus adultos vão colocando os acessórios. Há quem opte por bichinhos, redinhas ou luzinhas atrás do banco traseiro. Há quem instale néon embaixo do veículo, aromas insuportáveis na cabine, faróis que cegam quem vem na direção contrária… Sem contar equipamentos de som que poderiam sustentar um show de pequeno porte, feitos sob medida para infernizar quem está por perto – até porque, via de regra, a música que sai dali é razão suficiente para desacreditar da espécie humana. E esses são apenas alguns da lista infinita de acessórios que vêm ajudando a devastar o convívio social civilizado.

Adultos cada vez mais incapazes de orientar os filhos que “cometeram” transformam essas crianças e adolescentes em criaturas incontroláveis e viram seus reféns. Manipuladores extremados, quase sempre esses pestinhas estão na verdade clamando por limites que todos temem apresentar. Afinal, a desculpa do trauma emocional é um bom instrumento de omissão sedimentado nos últimos tempos – fundamento psicológico que não fazia nenhum sentido no tempo dos nossos avós e pais, que aprenderam e ensinaram compostura e respeito como valores incondicionais.

Por causa dos acessórios que recebeu, aquela criança do supermercado tornou-se um modelo SL (Sem Limites) e obrigou todo mundo que estava nas redondezas da escada rolante naquele pedaço de manhã a ouvir, um zilhão de vezes, a frase lapidar, em tom cada vez mais insuportável: “Vem, Maria Eduarda. Vem!”. Por óbvio, o último “vem” foi ficando cada vez mais irritadiço e alongado.

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

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