Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA Verdade ou mentira?

Elisa Riva/Pixabay

Verdade ou mentira?

  • Heraldo Palmeira

É provável que os dilemas sejam tão humanos quanto nós, que pessoas de todas as épocas viveram dúvidas existenciais tão profundas quanto as atuais. Quem não se pega confuso diante das coisas do mundo?

Verdade e mentira são forças simbióticas, às vezes indecifráveis. Não é de hoje que relativizamos a mentira quase como um componente de sobrevivência, uma alternativa para tentar tornar mais fáceis situações delicadas. Uma decisão desastrada em qualquer circunstância – todos nós já mentimos alguma vez em menor ou maior gravidade e sabemos bem como é.

Na nossa ânsia de validar a mentira cotidiana em verdade, chegamos ao cúmulo de transformar a palavra “mentira” na expressão “faltar com a verdade”. Os mentirosos, que sempre foram maioria, estabeleceram que chamar alguém de mentiroso é falta gravíssima passível de reparação, amparando o “ofendido” em códigos jurídicos que preveem calúnia, infâmia e difamação.

Quando a dificuldade para estabelecer verdade e mentira fica muito aguda, pode ser boa saída baixar a luz do ambiente, colocar música, abrir uma garrafa de vinho a gosto e se embriagar sem pudor. Afinal, já diziam os antigos, “No vinho está a verdade”.

Avaliar o nível de verdade ou mentira dessa máxima etílica também não é tarefa fácil, já é difícil no nascedouro. Consagraram a latina In vino veritas como a expressão original, atribuída ao naturalista romano Plínio, o Velho (23-79). Porém, a citação grega En oino aletheia quer dizer a mesma coisa e foi atribuída ao poeta grego Alceu de Mitilene (630 a.C.-580 a.C.). Isso mesmo, alguns séculos antes. Mesmo assim, tim-tim para a parte da verdade!

Houve um tempo em que a leitura diária de jornais era um vício comum em todos os lugares. Não por acaso, o formato tabloide ganhou força em muitos países porque facilitava o manuseio nos ambientes lotados do transporte de massa.

Para complementar o ambiente de farta circulação de conteúdo, revistas semanais de informação mudavam o ritmo cardíaco dos países com suas matérias de capa, e outras, especializadas, tratavam dos seus assuntos específicos – ciências, história, variedades, carros, artes, mulheres nuas, quadrinhos. Correndo por fora, rádio, televisão e até “jornais” audiovisuais que o cinema exibia antes dos filmes em cartaz.

Esse robusto conjunto de transmissão de notícias e conhecimento servia como referência num tempo em que as populações tinham interesse pelo que acontecia ao redor, mantinham uma perspectiva mínima de coletividade, buscavam juntas decifrar verdade e mentira e formar senso crítico.

Ainda não foi apagada inteiramente da memória coletiva aquela cena matinal de bancas de jornais cercadas de pessoas lendo as manchetes dos muitos jornais do dia pendurados nos mostruários de plástico. Era gente comum interessada em se informar antes de iniciar o expediente, buscando elementos para alimentar as conversas do dia no ambiente de trabalho. Hoje, uma multidão desinformada sequer consegue alcançar o significado de jornal, revista, banca de jornal e senso coletivo.

Outro ponto relevante aponta para os departamentos de comunicação e marketing que ocupavam espaço estratégico nas estruturas corporativas. Costumavam estar no ambiente das presidências nos organogramas das grandes empresas, trabalhando em parceria com agências de publicidade que compunham uma espécie de Olimpo da criatividade. Um tempo em que muita gente acompanhava a distribuição dos Leões de Cannes, dos Clios de Miami com respeito litúrgico, e os principais publicitários eram verdadeiras celebridades.

Pela escassez galopante de talentos e criatividade, há algum tempo o setor foi rebaixado para o ambiente operacional das corporações. Na verdade, virou refém de agências ruins e mero contratante de mídias, com triste ênfase às plataformas dominadas por algoritmos. Um empobrecimento que parece alinhado ao grau de exigência do distinto público que está sendo formado pelo conteúdo das redes sociais, e a resultados baseados em cliques que quase nunca traduzem a verdade.

Crentes que somos os maiorais porque aprendemos a mexer em bugigangas eletrônicas dependuradas em sistemas sofisticados, chegamos à sociedade pós-tudo. O que enxergamos sem fazer muito esforço? Que é também a sociedade da falsificação, que produz cenas e narrativas utilizando essas ferramentas que deveriam servir para objetivos nobres, construtivos e desenvolvimentistas, mas que se deixou dominar pela ditadura dos algoritmos.

Tanto que o mundo está sendo moldado por popularidade digital construída, muitas vezes, no ambiente secreto das “fábricas de cliques”. Um fenômeno global que se transformou em grande negócio, de alta lucratividade, operado por trabalhadores encarregados de criar contas falsas em plataformas de mídia social.

A tarefa diária desses “operários”? Curtir, compartilhar ou comentar (cada ação tem um custo diferente) postagens dos clientes, de modo a lhes dar falsas popularidade e influência on-line. Um pântano onde pessoas, empresas e políticos chafurdam para parecerem influentes, manipularem a opinião pública e faturarem alto em prestígio, poder e dinheiro.

Esse universo obscuro foi exposto no livro A Beggar’s Honey, do fotógrafo britânico Jack Latham, depois que ele visitou cinco desses ambientes em Hong Kong e Vietnã. Uma das “fábricas” operava apenas no Facebook, com ações em massa relacionadas a denúncias, comentários, solicitações de amizade e coisas do gênero. “Inicialmente, foi um pouco assustador, porque, obviamente, elas operam numa área cinzenta da lei”, declarou o autor.

Latham também observou que grande parte dos clientes são influencers, artistas em início de carreira e pessoas que desejam parecer populares, e que os empregados do sistema “não têm necessariamente uma percepção do seu papel no panorama geopolítico”. Um deles foi taxativo: “É um trabalho como qualquer outro, mas às vezes é difícil esquecer que nada do que estou curtindo é real”, declarou sob condição de anonimato.

Vai ficando inadiável calibrar a direção do dedo que busca culpados, mesmo que seja incômodo e inevitável apontá-lo para o espelho. “As ‘fábricas de cliques’ não são a causa do problema. O problema começa quando as pessoas se apoiam nas redes sociais para consumir informação. As ‘fábricas de cliques’ nascem dessa premissa. As pessoas querem consumir informação de forma rápida e em formato de entretenimento. E todo mundo quer ser uma estrela nas redes sociais, isso também está na raiz do problema”, sublinha Latham.

Os especialistas têm alertado para as graves consequências desse cenário. “O verdadeiro perigo para as sociedades reside na disseminação de desinformação”, acrescenta Latham. Aumentar popularidades, distorcer a percepção da realidade e influenciar decisões importantes – escolhas de consumo a resultados eleitorais – passou a ser relativizado como se não houvesse um abismo agregado. “O impacto vai além da vaidade nas redes sociais. Estamos falando de manipulação em escala industrial, com implicações reais para a sociedade”, alerta a socióloga e escritora vietnamita-canadense Linh Nguyen, especializada em mídia digital.

A popularização da inteligência artificial torna a situação ainda mais complexa. Se, antes, um texto mal escrito ajudava a desmascarar as contas falsas, o uso de ferramentas como o ChatGPT e similares dá um polimento que dificulta a percepção do embuste.

Enquanto as autoridades patinam para combater essa poderosa indústria de narrativas – licença poética para mentira –, não custa reconhecer que o fenômeno é resultado da nossa desistência da crítica, da decisão de aceitar bovinamente tudo que nos chega pelos dispositivos digitais. Pior: aceitar e espalhar sem qualquer filtro, transformando muitas vezes esse lixo em “informação”.

Disseminar informações falsas tornou-se uma espécie de “arma” de muitos governos, organizações e pessoas que pretendem moldar e direcionar a percepção da sociedade para lucrar muito com isso. Não é coincidência ver tantos embates contaminados por cargas enormes de desinformação, ideologias e interesses de todos os tipos.

Chegamos a um tempo em que a velha máxima “Contra fatos não há argumentos” está desfigurada pela nova versão “Contra argumentos não há fatos”. Beira o inacreditável que a aceitação da realidade se tornou algo cada vez mais difícil, onde a verdade estampada pode não valer nada inclusive para pessoas tidas e havidas como esclarecidas, e todo mundo quer dar a palavra final.

Parece que estamos no meio de uma disputa entre humanidades e tecnologias, com os extremismos sempre maléficos em cena. A disrupção é saudável de tempos em tempos, tem suas virtudes, mas não é um processo simples ou infalível como os disruptivos tentam fazer crer. Talvez o elixir esteja em associar com harmonia virtudes humanas e avanços tecnológicos. “Não me sigam, que eu também estou perdido. Ou façam ou descubram o próprio caminho. Façam como eu: inventem. Ou melhor, não façam como eu. Inventem!”, aconselhou o cantor e compositor Belchior.

Sim, cansamos de ouvir pela vida a velha máxima popular “Se conselho fosse bom ninguém dava, vendia”. Quem sabe, vale a pena ouvir o menestrel da música e sair por aí inventando as próprias modas? Por que é tão difícil abandonar o papel de vaquinha de presépio dos rebanhos digitais?

A ignorância é filha da falta de leitura e, num mundo em que todos os dias as pessoas parecem abduzidas consumindo bobagens nas redes sociais, é meio esfarrapado dar qualquer desculpa para não redirecionar esse tempo perdido aos livros. Afinal, eles são mágicos, provocam a imaginação e desenvolvem habilidades essenciais aplicáveis em todos os campos. E ainda tem a música, o cinema, as artes plásticas…

A arte e o conhecimento sempre salvam a humanidade, são bons antídotos contra esse niilismo que estamos nos impondo, reduzindo tudo a nada, construindo esse modelo de não existência que está sufocando todo mundo. Nessas horas, a verdade que está no vinho pode ser boa conselheira, pouco importa se grega ou latina. A verdade é acima de tudo humana.

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

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