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De poetas latinos
- Horácio Paiva
Gosto dos clássicos e sempre os visito. Na paz deste Natal, isolado em “meus Montes Sabinos”, que transporto do histórico Lácio para a beleza agreste de Taipu, na Vivenda da Conceição da fazenda Lagoa Nova, releio Horácio, Vergílio, Ovídio, e navego Odes, Bucólicas e Arte de Amar. Depois, sonhando sem dormir, entrego-me a vigília amorosa e indispensável, a Pervigilium Veneris, ou seja, a Vigília de Vênus, deusa do Amor. Sim, pois “homo sum; nihil humani a me alienum puto” (“sou homem; nada do que é humano a mim é estranho”), como dizia Terêncio e repetia meu professor de latim, ao que acrescento: sobretudo a paixão. E, grato como costumo ser, mais uma vez agradeço a emoção, a fantasia e o prazer estético que me traz a poesia clássica, rica herança que recebo desse histórico trio de mestres da harmonia e do verso, ilustres representantes da chamada época de ouro da poesia latina (século I, a.C., a século I, d.C.). E enquanto me visita a Antiguidade, no recolhimento deste refúgio rural onde me encontro, na companhia da noite e de cécubo vinho, anoto ao acaso essas breves amostras retiradas das obras-primas revisitadas e as repasso, com o prazer sem pressa de quem presenteia (sim, isto mesmo, com a aliteração que o humor torna proposital):
Da Ode 11, Livro I, das “Carmina” de Horácio (na minha tradução)
“Não indagues (ímpio é saber), ó Leucónoe,
Qual fim reservarão, a mim ou a ti, os Deuses
(…)
Sê sábia, o vinho decanta e ajusta
A longa esperança à vida breve.
Enquanto conversamos, foge invejoso
O tempo: colhe o dia de hoje, crendo
O mínimo possível no amanhã.”
Do poema 1, das “Bucólicas”, de Vergílio (na tradução de Zelia de Almeida Cardoso)
“Todavia, tu poderás descansar esta noite comigo
Sobre uma folhagem nova. Tenho frutas maduras,
Castanhas assadas e fartura de queijo;
Os telhados das casas já estão fumegando, ao longe,
E as sombras caem mais alongadas do alto das montanhas.”
Da Arte de Amar, I, de Ovídio (na tradução de Anna Lia A. de Almeida Prado)
“Se alguém neste povo não conhece a arte de amar,
Leia este poema e, tendo-o lido, já instruído, ame.
Pela arte os céleres barcos com a vela e o remo são movidos,
Pela arte leve é o carro. Pela arte deve ser regido o Amor.”
“(…) a mim cede o Amor, embora fira com o arco
Meu peito, agite e lance suas tochas.
Quanto mais me feriu o Amor, quanto mais violento me queimou,
Tanto mais vingador eu serei da ferida feita.”
“Nós, a Vênus sem riscos, os segredos permitidos cantaremos,
E no meu poema nada de censurável haverá.”
No mais, é lembrar que Vênus faz sua vigília… na eternidade. E, na “Pervigilium Veneris”, um belíssimo anônimo latino, essa eterna vigília se encontra… e nos encanta, nesse bordão, aqui no meu jeito de dizer em português:
“Amanhã deve amar quem nunca houver amado,
E quem já houver amado, amanhã deve amar.”
Há também outros, vários outros, todos bons, certamente direis, que foram capazes de ouvir estrelas e derramar seus eternos e encantados segredos sobre nós, e que poderiam participar deste sarau… E disto são exemplos Propércio, Tíbulo, Marcial, Ausônio, Sulpícia, Catulo.
Há mais, mas por enquanto, separo dois destes já citados: Sulpícia e Catulo.
Sulpícia, única representante feminina nesse grupo e uma das poucas mulheres da Antiguidade a deixar uma obra poética, é tida como autora de seis poemas curtos, mas significativos, o que lhe garante presença permanente no Parnaso da poesia latina. De suas Elegias (Elegia III) são esses versos, traduzidos por Zelia de Almeida Cardoso:
“Finalmente o amor chegou e seja eu mais conhecida
Por tê-lo encoberto por pudor do que por tê-lo revelado a alguém.
Comovida por meus versos, Citereia o trouxe
E o depositou em meu regaço.
Vênus cumpriu suas promessas. Se alguém, ao que se sabe,
Não encontrou alegrias, que fale das minhas.
Não gostaria de confiar alguma coisa a tabuinhas seladas
Para que ninguém a lesse antes de meu amado;
Alegro-me de meu erro; aborrece-me fingir por minha reputação.
Que se diga que eu fui digna com um homem digno.”
Quanto a Catulo, sua importância é inegável e, sua posição, pioneira nesse cenário de estrelas, pois anterior àquela mais famosa tríade do período áureo da poesia lírica romana (Horácio-Vergílio-Ovídio). Suas “Carmina” (musicadas pelo alemão Carl Orff, um dos mais destacados compositores modernos do século XX) são belíssimas e um convite permanente ao amor e à sensualidade. Vejamos a de número 5, na tradução do professor Lauro Mistura:
“Vivamos, minha Lésbia, amemo-nos,
E a todas as censuras de velhos
Demasiadamente austeros
Demos o valor de um único asse.
Os sóis podem se pôr e retornar;
Quando porém numa única vez a breve luz
De nossas vidas desaparece no ocaso,
Somos obrigados a dormir uma noite sem fim.
Dá-me mil beijos, depois cem,
A seguir outros mil e mais cem
E depois ininterruptamente outros
Mil e mais cem.
A seguir, depois que tivermos trocado
Estes muitos milhares de beijos,
Alteraremos a soma deles para que
Não saibamos quantos foram ou
Para que nenhum invejoso possa nos
Lançar um mau-olhado quando souber
Exatamente o número destes beijos.”
“Da mi basia mille, da mi basia,…” Poema sonoro e apaixonado, e tal sonoridade, capaz de inspirar Carl Orff em sua peça musical, associada à exaltação sentimental também me serviu de inspiração ao escrever meu poema “Noite Íntima”:
“Na estrada de penas e dores
o que me redime
senão a memória
de teus beijos musicais?
beijos que ainda
ditam meu voo
como sinos do amor que do passado
se tornam imortais”
No mais, Musa, no mais, que a lira desfalece e a voz embarga no imaginário de tantos beijos. Os demais bardos trarei em nova amostra, pois, na Arcádia, a noite é d’água, o pau flora e as Plêiades (Setestrelo, entre nós, com suas estrelinhas que povoam a mística sertaneja) já se escondem entre as nuvens.
*HORÁCIO PAIVA, advogado e escritor