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IA, vírgula
- Heraldo Palmeira
A importância dos avanços tecnológicos é indiscutível. Basta pensar o que seria a vida humana sem eles e estaríamos grunhindo na Pré-História. Nossa própria expectativa de vida permaneceria estacionada na faixa dos 30-40 anos.
Todas as gerações que estão convivendo com as novidades cada vez mais impressionantes surgidas a partir da segunda metade do século 20 repetem um comportamento: o deslumbramento com tudo que é novo. É natural, a novidade nos mostra coisas desconhecidas, traz facilidades e o encantamento inicial arrebata, apaixona. E vicia.
Mas não foram poucas as novidades que, mesmo prometendo revolucionar seus segmentos, se mostraram menores do que a primeira impressão – diz o ditado, “é a que fica” – e tiveram dois destinos inevitáveis: ou se ajustaram à realidade, comprovaram utilidade e seguiram cumprindo sua vida útil ou simplesmente sumiram sem deixar saudade.
Apenas no ambiente da mobilidade temos dois exemplos claros. A roda, uma das criações mais perfeitas da inteligência humana. O Seagway, uma geringonça elétrica sobre duas rodas que chegou em 2001 com a promessa de mudar o conceito de transporte em pequenas distâncias e hoje desfila nos shoppings carregando seguranças em pacatas rondas internas.
Estamos vivendo a febre da Inteligência Artificial (IA). O exemplo mais reluzente do momento é o ChatGPT, usado para conversas e redação de textos lançada em novembro de 2022. As redes sociais não param de mostrar também as “maravilhas” de diversas outras ferramentas, a maioria oferecendo bobagens como trapacear imagens e sons atribuindo alhos a bugalhos e vice-versa. Pessoas sem qualquer talento passaram a criar desenhos, logomarcas, vídeos e trilhas sonoras acreditando que viraram artistas prontos para entrar no mercado a caminho da celebridade na semana seguinte.
Como a turma dos apressados tecnológicos não perde tempo para comprovar sintonia com a modernidade da hora, muita gente decidiu passar pelo crivo do ChatGPT até os bilhetes mais banais. A turma “do contra” também começou a experimentar e dar gargalhadas de algumas respostas obtidas. Um amigo do Giramundo, jornalista experimentado e chegado a uma presepada, resolveu pedir sugestões para uma visita turística a uma cidade que mal existe no mapa, com cinco ou seis ruas. Pela resposta, o visitante teria impressão de estar prestes a pisar em Nova York. Outro resolveu fazer pesquisas para um livro que está escrevendo e ficou boquiaberto com a redundância e inutilidade de alguns resultados – em muitos casos ele completou a demanda incluindo muitas informações que já tinha e obteve respostas sem nenhum acréscimo relevante.
Pouco depois do lançamento o ChatGPT se espalhou rapidamente pelo meio acadêmico mundial. Não demorou, muitos estudiosos começaram a retirar a fantasia da lebre e o gato apareceu, reforçando o ditado popular “Nem tudo que reluz é ouro”.
Passo seguinte, a ferramenta começou a ser colocada em xeque. Tanto que oito universidades australianas consideraram que seu uso pelos alunos poderia ser considerado simplesmente plágio. Ao mesmo tempo, estudos realizados pelo professor Jonathan Choi, da Universidade de Minnesota (EUA), e outros pesquisadores comprovaram que o robô da OpenAI conseguia ir pouco além das provas de admissão do curso de direito da instituição.
A atitude mais incisiva veio da Sciense Po, universidade francesa considerada uma das melhores escolas de estudos políticos do mundo: “O uso sem referência explícita do ChatGPT na Sciences Po, ou de outra ferramenta que recorra à inteligência artificial, está […] no momento proibido para realização de trabalhos orais ou escritos. Quem burlar essa norma poderá ser penalizado ‘até com expulsão da instituição ou do ensino superior’”, alertou a direção em comunicado enviado a docentes e alunos.
Embora o uso continue possível, desde que recomendado expressamente por professores e para fins pedagógicos, a universidade respondeu de forma clara à agência de notícias France-Presse a respeito da questão de plágio que cerca a ferramenta: “Levanta sérias dúvidas para as partes interessadas em educação e pesquisa no mundo inteiro”.
“Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come” é uma máxima popular que nos ajuda a entender a situação em que a educação mundial parece ter criado um dilema sobre a mediocridade, porque os alunos agora podem escolher entre apresentar trabalhos “feitos” pelo ChatGPT ou seguir utilizando os serviços dos “profissionais” dedicados a esse negócio vergonhoso de burlar o caráter principal da formação: o aprendizado do estudante.
Seja qual for o caminho dos futuros doutores, seguiremos ouvindo desculpas esfarrapadas como “correria do cotidiano”, “carga intensa de trabalhos escolares”, “vovó estava internada”, “o gato subiu no telhado”… como explicação para fraudarem as próprias vidas. A grande pergunta que deveria ser feita é se esse tipo de estudante realmente merece os diplomas que estarão orgulhosamente estampados nas paredes da vida profissional para enganar os futuros clientes.
Nos tempos analógicos, os maus alunos eram simplesmente descartados das oportunidades profissionais mais nobres por falta de conhecimento. Hoje, sobram truques para desmentir a verdade, o que é um prejuízo para o desenvolvimento natural da humanidade.
Ainda bem que há uma pedra no meio desse tabuleiro, o discernimento. É ele que vai garantir, lá adiante, escolher entre joio e trigo no mercado. Afinal, já dizia uma marchinha carnavalesca, “Quem sabe, sabe, conhece bem”.
As reações de prudência da academia e governos diante da IA, e a proibição de dispositivos eletrônicos em salas de aulas adotadas por diversos países desenvolvidos, pode ser indício de um movimento inconsciente que o mundo já colocou em curso para reagir de forma responsável aos desafios impostos pela adoção de novas tecnologias cada vez mais poderosas.
Com o passar do tempo, talvez se recomponha uma visão que reinou por muito tempo: as novidades tecnológicas são grandes aliadas da inteligência humana e é para isso que elas existem. Por ora, permanece no ar a impressão de que quem prega a superação do cérebro humano pelas máquinas ainda não entendeu a existência e a importância do próprio homem. E de si mesmo.
Trecho incidental Quem Sabe, Sabe (Jota Sandoval-Carvalhinho)