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Imaginário
- Kalunga Mello Neves
Coloco a poltrona na calçada, sento-me olhando para o céu, acompanho a maratona que fazem as estrelas rumando no clarear de um quase amanhecer, à procura de um pote azul que acreditam existir ao final do arco-íris. Por aqui, vez que outra, um cachorro recita Camões e late em latim, fazendo o sinal da cruz.
A televisão do vizinho está ligada. Eu canto baixinho para não escutar o que diz o locutor. As noites de maio são lindas! Percebo em minha mão o leve volume da transparente taça de vinho. Tinto, seco, merlot, o que mais gosto. Ergo-a num brinde ao meu inimigo imaginário, perdoando-o pelo mal que me causou.
Os inimigos reais são cruelmente inofensivos. Fazem contraponto aos meus amigos de ocasião, que pouco acrescentam ao pouco que sou para eles. Agora, os outros, aqueles, estes sim. São para toda a vida. Eles sabem, não é preciso reverenciá-los aqui.
Uma garotinha, filha da vizinha, me oferece uma xícara de pipoca. Depois sai correndo e o cachorro vai atrás dela. Eu adoro crianças. E velhos, eu me adoro também. Só não gosto de políticos, de radicalistas, de minorias majoritárias, de oportunistas, de quem não gosta de mim.
Uma canção, eu precisava escutar agora. Que fosse lenta, romântica, melodiosa, letra benfeita. Eu sairia da poltrona e convidaria minha primeira namorada pra dançar.
Depois que ela fosse embora, eu me sentaria aqui de novo. E pegaria um livro. Não muito grosso, que livro grosso não me atrai. E leria em voz alta para mosquitos e grilos ouvirem. E, quem sabe, os anjos também, lá de longe.
Minha taça de vinho já está vazia. Encho-a novamente. A noite está ficando fria. Engraçado, sempre quando me dá vontade de chorar, tenho vontade de rir. Daqui a pouco vou dormir.
Amanhã, quando sair para dar minha caminhada, vou ter que ouvir de novo a mesma ladainha de sempre: “Olha lá o seu Adamastor Pereira, coitado, não regula bem da cabeça!”.
*KALUNGA MELLO NEVES, escritor e brincante