Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

JOSÉ NÊUMANNE PINTO Um Nobel no Brasil

Valerio Errani/Pixabay

Um prêmio Nobel no Brasil

  • José Nêumanne Pinto

Meu poema, que fez Saramago chorar, foi citado no discurso de posse de José Paulo Cavalcanti Filho na Academia Brasileira de Letras (ABL) na sexta-feira 10 de junho de 2022, susto, emoção e honra.

Na sexta-feira 10 de junho de 2022, o ex-ministro da Justiça José Paulo Cavalcanti Filho tomou posse na cadeira que era ocupada por seu conterrâneo Marco Maciel na Academia Brasileira de Letras (ABL). Não podia faltar à solenidade, de vez que o próprio Zé Paulinho, a quem fui apresentado por Tancredo Neves em pessoa, sempre disse que a Paraíba é o maior município de Pernambuco e além de ser o Estado de Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre, ídolos de minha veneração. Anedota privada à parte, o fato é que, se não fosse, teria perdido susto, emoção, prazer e honra de ter versos meus citados da tribuna da casa de Machado de Assis.

Pois foi o que aconteceu. Lá para o fim do discurso, na hora em que a coruja pia, o novo imortal pôs-me ao lado simplesmente de Olavo Bilac, poeta de quem ouvia desde muito cedo minha mãe recitar o poema épico mais simples e bonito que eu conheci, O caçador de esmeraldas. “Bilac escreveu: Última flor do Lácio, inculta e bela, és a um tempo esplendor e sepultura”. E, apontando em minha direção, afirmou: “E José Nêumanne Pinto completou: ‘semente, coração, berço e caixão’”. Tais são os atributos da língua de Camões, enunciados num poema de minha autoria intitulado A Seara de Saramago e publicado em dois livros: As Tábuas do Sol, de 1986, e Solos do Silêncio, de 1996. Ambos têm orelhas de Ivan Junqueira, ex-presidente da ABL, prefácio de José Paulo Paes e texto de contracapa de Tereza Souza, que, na infância, havia inspirado um poema de Manuel Bandeira e sido amiga, desde jovem, de um antigo vizinho num subúrbio do Rio, Lins de Vasconcelos, do Rei do Baião, Luiz Gonzaga.

A primeira coletânea ainda estava fresca quando o presenteei a Saramago. Em agosto de 1986, o genial romancista viajou para São Paulo para lançar o que considero seu melhor livro, O Ano da Morte de Ricardo Reis. Levei-lhe o exemplar, e, claro, li o poema sobre nosso comum vernáculo com seu sobrenome no título. O militante comunista e jornalista profissional chorou discretamente e o autografou na folha de rosto. Nunca mais vi o xará na vida, mas guardo com zelo e ciúme o que escreveu:

“Para o José Nêumanne e a Regina, este trabalho de um autor muito grato, que vive, de facto, com um pé em Portugal e outro na América Latina (Brasil) – a estima pessoal e intelectual de José Saramago, S. Paulo/86”.

A meu pedido, um querido amigo de fé de muitos anos, apesar da diferença de idades, o poeta e crítico Astier Basílio, que nasceu em Vitória de Santo Antão (PE), mas nos conhecemos na cidade de origem de seus pais, Tião e Socorrinha, Campina Grande, usou seus talentos de vasculhador de arquivos cibernéticos. E descobriu que se escreveu bastante sobre o romancista português no Brasil antes da viagem em que nos encontramos. Antes de se tornar conhecido como ficcionista, chamou a atenção pela militância comunista na imprensa lusitana depois da Revolução dos Cravos. No levantamento a que me refiro destaca-se Armindo Blanco. O português, que foi editor de features do Última Hora do Rio, escreveu, em meados dos anos 1970, vários textos sobre a trajetória do notório jornalista de ofício, exaltando seu enorme talento de ficcionista.

Em 1978, o crítico Vilson Brunel Mendel mencionou o autor de Manual de Pintura e Caligrafia no Suplemento Literário do Estadão. Em setembro de 1983, na coluna Informe JB, então editada pelo acadêmico Cícero Sandroni, de quem cobri férias, registrou a presença dos escritores portugueses José Cardoso Pires, Alexandre O’Neil e José Saramago no lançamento do livro Viagem à Literatura Portuguesa Contemporânea no Centro Empresarial Rio. O bibliófilo José Mindlin destacou O Ano da Morte de Ricardo Reis (de 1984) e Memorial do Convento (de 1982) em suas melhores leituras em 1985 no Suplemento Literário do Estadão.

Saramago passou despercebido por muitos críticos brasileiros, mas não por Wilson Martins e, principalmente, Affonso Romano de Sant’Anna. Este nunca perdeu uma oportunidade de celebrar a edição brasileira da Bertrand do Memorial nem o pioneirismo da Difel ao editar seu primeiro romance reconhecido como fundamental pela crítica, Levantado do Chão.

Em 12 de janeiro de 1986, em artigo intitulado O cerco feroz da comunidade de amigos, publicado no Cadeno B do Jornal do Brasil, o autor destas linhas celebrou a coragem do militante comunista ao enfrentar “as polêmicas posições políticas semi-salazaristas do maior poeta europeu do século 20, o lisboeta Fernando Pessoa”. Dois meses depois, em 14 de março, na mesma editoria de variedades, foi exaltada pelo mesmo autor a ousadia da professora de literatura da USP e ex-editora de variedades do Estadão, Cremilda Medina, que elevou o lusitano à altura dos celebradíssimos romancistas Robert Musil, austríaco, e Ítalo Calvino, italiano, tidos como ocupantes do topo do Olimpo da literatura europeia em fins do século passado.

Em 21 de agosto de 1983, três anos antes de nosso encontro num hotel em Santa Ifigênia, o correspondente do Jornal do Brasil na Itália, Araújo Neto, entrevistara o protagonista destas linhas e a reportagem fora publicada sob o significativo e premonitório título de O descobridor do Macondo Português.

Há ainda dois fatos para a conclusão deste relato. Primeiro, a entrevista a Millôr Fernandes, publicada no Jornal do Brasil em 11 de outubro de 1986, a partir de gravação feita por André Ervilha e Cora Ronai. E, last but not least, a concessão do primeiro Prêmio Nobel para um autor em português, em 1998, três anos após ele ter recebido o Prêmio Camões.

*JOSÉ NÊUMANNE PINTO, escritor e jornalista

Leia aqui A Seara de Saramago

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