Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

KALUNGA MELLO NEVES A primeira vez

Ingesistel/Pixabay

A primeira vez

  • Kalunga Mello Neves

A primeira vez que eu…

Fui com meu pai ver um jogo de futebol do meu time, lembro até hoje do sol que brilhava. Saímos da minha cidade num ônibus que parava pra descer cachorro, pra subir galinha, pra moça grávida vomitar, pra tudo e por qualquer motivo. De tanta parada eu acabei enjoando também, minha camisa ficou toda lambuzada, tive que ganhar outra assim que o ônibus chegou na rodoviária, o que não foi de todo ruim. Fomos para o estádio, pra mim um Maracanã de tão emocionado que estava. Meu time empatou, mas o sorriso do meu pai me ganhou pra sempre.

A primeira vez que eu…

Fui para a escola primária, na primeira série, tinha recém completado sete anos. Estava eufórico diante do desconhecido que me esperava. Sabia que a partir daquele dia eu teria que estudar por muito e muito tempo para ser alguma coisa na vida. Inseguro e ansioso, perguntava para os meus amigos que já frequentavam o colégio como é que era mesmo participar de uma turma. Onde a gente sentava, se a professora explicava a matéria em voz alta ou baixa pra gente entender, o que tinha que fazer pra aprender a ler, e os castigos como é que eram. Nem ouvia todas as explicações direito, tão nervoso que estava. A minha prima, dois anos “mais velha” do que eu, que tinha um prazer imenso em me judiar, me explicou que se a gente não ouvisse direito o que a professora dizia ficava um longo tempo de castigo, sim, e os mais pequenos, que era o meu caso, sentavam bem no fundo da sala, onde tinha bastante barulho da rua. Pronto, desatei a chorar e não queria mais ir para a escola. A mãe me convenceu a mudar de ideia à base de rapadurinhas de amendoim, que eu gostava muito, e me prometendo que a tia iria colocar minha prima de castigo, ela sim. Fiquei mais aliviado e no dia seguinte, pela primeira vez, fui para o colégio estadual, aquele mesmo que até hoje, quando passo por ele, me dá a impressão de que ainda sou aquele aluninho assustado da primeira série.

A primeira vez que…

Ganhei um presente inesquecível foi com cinco anos. Um caminhão feito pelo meu pai, um carpinteiro de mão cheia. Um caminhão grande, de madeira, com uma caçamba que se erguia e derramava toda a areia que eu tinha carregado antes, junto com algumas pedras que eu dizia serem preciosas. Brinquei com ele até me sentir um homenzinho que já tinha idade para se interessar por outras coisas, outras brincadeiras.

A primeira vez…

Que ganhei uma camisa deslumbrante, foi minha mãe que fez, uma costureira de mão cheia, prendada como poucas. Ela é que fazia as minhas roupas mais fashions. Se eu via nas revistas algum artista com uma camisa diferente, pedia para ela fazer uma igual para mim. E fazia até muito mais bonita, tão querida que ela era. Uma vez fez pra mim uma camisa bem colorida e estravagante, igualzinha à que o Erasmo Carlos usava. Eu me sentia, usando aquela camisa berrante, o Tremendão da minha rua, mora! Daí que eu me vestia sempre na última moda e as gurias me achavam um “pão”, que era o “gato” da época. Estes presentes, o caminhãozinho e as minhas roupas, como poderia esquecer, pois se também fizeram parte das minhas primeiras vezes?

A primeira vez que eu…

Fugi de casa foi quando fiz uma tremenda travessura. Minha mãe colocou um colchão de palha para secar ao sol, o que me leva a crer que era uma manhã muito bonita. Deitei-me sobre ele e achei lindo o meu descansar. Mas faltava alguma coisa. Fui à cozinha e peguei uma caixa de fósforos. Deitei-me de novo e acho que até dormi um pouquinho. Quando acordei, uma ideia brilhante não me saía da cabeça. Que vontade de fazer uma experiência! Lembram da caixa de fósforos? Pois peguei um deles, o acendi e joguei no colchão. Pra quê!!!! O fogo logo tomou conta de tudo, tive que sair correndo apavorado. Com medo do que iria acontecer comigo, no mínimo castigo perpétuo, aproveitei que estava correndo e continuei o meu pique até a casa do meu tio, quase no outro lado da cidade. Não expliquei a razão daquela visita inesperada tão perto do horário de almoço, mas perguntei se tinha algum problema eu ficar por alguns dias. Minha tia sorriu. Este “alguns dias” se estendeu até à tardinha, quando minha mãe apareceu para perguntar se alguém sabia do meu paradeiro. Tentei me esconder dentro do guarda-roupa, mas não deu tempo. Voltei para casa não tendo coragem nem para pedir desculpas. Aquela foi a primeira vez que fugi de casa. Outras tantas aconteceram, mas a primeira foi, com toda certeza, a mais traumatizante.

A primeira vez que eu…

Fiquei triste, nem sei se foi tristeza mesmo o que eu senti. E nem sei se foi realmente a primeira vez. Mas quando me lembro, triste, a lembrança que me vem à mente é esta. Noite de Natal. Pra variar, meus pais resolveram dormir cedo. Logo depois do jantar. Jantar simples que foi servido no mesmo horário dos outros jantares do ano. O presente que ganhei também foi simples, não poderia ser de outra maneira. Imaginei o que meus outros colegas ganhariam quando chegasse perto da meia-noite. Acho que os meus pais se deitaram mais cedo porque talvez estivessem tristes. Não sei. No outro dia eu iria espiar para ver se tinha gotinhas de lágrimas nos travesseiros deles. Depois do jantar, presente simples na mão, luzes da casa todas apagadas, uma lua imensa a iluminar a noite lá fora. Fui sentar na calçada. As outras casas com árvores de Natal à mostra me deixavam com mais jeitinho de criança triste ainda. Foi a primeira vez que ouvi Pedro Pedreiro, do Chico Buarque, e prestei atenção na letra. Sempre gostei de olhar para o céu no verão. E como cantava Roberto Carlos em As Canções que Você Fez pra Mim, naquela noite eu senti uma alegria triste. Vários outros Natais aconteceram, meus pais já não estão comigo, agora com a graça de Deus tenho minha família linda e feliz. Mas em todos os fins de ano uma pontinha de tristeza me acompanha em cada brinde que trocamos. Não por mim, mas por alguém que deve estar que nem eu estava naquela noite de tanto tempo atrás, sentado na calçada olhando para o céu cheinho de estrelas contentes a me desejar feliz Natal.

A primeira vez que eu…

Chorei de alegria. Sempre achei que o pranto é mais verdadeiro justamente quando acontece em momentos de euforia. Acho mesmo que o pranto de tristeza combina mais com o silêncio a respeitar o que o causou. Chorar do trágico não nos exige sacrifício algum. Chorar abraçado a pessoa que a gente ama para saudar a chegada do primeiro filho, quem que não?

A primeira vez que eu…

*KALUNGA MELLO NEVES, escritor e brincante

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