Sasin Tipchai/Pixabay
O poder do dono da bola
- Kalunga Mello Neves
Sempre gostei, na minha infância, da convivência saudável com meus amigos, tanto os do bairro em que eu morava, como aqueles cujas casas eram em ruas adjacentes (gostei desta palavra que veio do nada se intrometer no meu texto. Adjacentes, que linda!).
Mas, confesso que entre tantos bons companheiros, o que eu mais admirava era aquele que vinha ao nosso encontro num Maracanã disfarçado de campinho desnutrido, com uma bola debaixo do braço. Sentia-se importante, nos olhava de cima para baixo, quem estava sentado, levantava-se para recebê-lo.
Então o par ou ímpar para escolher os dois times. E aí o poder do dono da bola dava o ar da sua graça. Um sinal sutil dele bastava para que este ou aquele menino jogasse neste ou naquele time. E sempre o dono da bola estava no time mais forte, mera coincidência.
Já que falamos em poder, para minha decepção, depois que eu soube realmente o seu significado, o percebi se deteriorando quase que proporcionalmente ao tanto que precisávamos da lisura integral de quem o exerce ou possua.
Todos nós gostávamos do dono da bola. Seu poder era democraticamente exercido. Aceitávamos suas exigências e regras para que pudéssemos ser escalados, concordávamos com o horário que impunha para que fossem iniciadas nossas peladas de fim de tarde. Até seu “uma mão lava a outra”, que depois adquiriu outro nome genericamente mais amplo, nos tinha como parceiros. Ele adorava butiás. Eu, por exemplo, trocava algumas dúzias de butiás do butiazeiro que adornava meu quintal pela garantia de não precisar jogar no gol quando fosse escalado para os jogos.
Eis-me às voltas com recordações de infância, sempre ela a nos trazer motivos para reflexões. Algumas dignas de serem discutidas num encontro de boteco entre Shakespeare e Honoré de Balzac. Ou dos Zés e Chicos da vida cotidiana, em algum quiosque diante do Copacabana Palace.
O poder dos donos da bola vai além da vaidade e do que a visão deles pode alcançar. Afinal, só querem jogar, e todos sabem que só jogam porque trazem a pelota. Mas não se lhes pode negar que, aqui e ali, podem terminar incentivando futuras carreiras de sucesso a partir daquelas peladas de várzea. Meninos que nem dá tempo de a gente assimilar por aqui e, de repente, já estão brilhando nos gramados da Europa. Todos seguindo a trilha da bola, buscando a mágica que passou pelos pés de Pelé, talvez o maior soberano do reino do futebol.
*KALUNGA MELLO NEVES, escritor