Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

Let it be

Reprodução/Diário do Rio/Marcos Hermes

Let it be

  • Heraldo Palmeira

GIRAMUNDO VIU Por muitos motivos, o Maracanã entrou novamente para as melhores memórias pessoais de Paul McCartney. Em 1990, nada menos que 184 mil pessoas lotaram o estádio e lhe garantiram o maior público para um show de artista individual da história da música.

Sábado (16), os 66 mil felizardos que testemunharam o encerramento de sua turnê mundial Got Back garantiram o mais impressionante Na Na Na – que virou linguagem universal há algum tempo – da sua carreira, uma imagem que causou grande impacto em Paul e seus músicos e continuará encantando o mundo sempre que for exibida. Os balões iluminados por celulares durante Ob-La-Di, Ob-La-Da também marcaram a noite com extrema beleza.

Depois de assistir ao show em Brasília, vi a apresentação do Maracanã pela TV ao lado dos irmãos Galvão – João, Babal e Galvão Filho, família de músicos queridos e beatlemaníacos que ganhei da vida. A transmissão do canal Disney+ foi de tirar o fôlego. Na casa, uma tela imensa, um equipamento de som de alto nível e comes e bebes irrepreensíveis. Clima de verdadeiro camarote.

Ficou no ar a impressão de que o Maracanã estava mesmo tomado de uma energia especial, e não era para menos. Afinal, a semana foi sacudida por rumores de que naquele show Paul anunciaria sua aposentadoria de grandes turnês em estádios e arenas ao redor do mundo. Para compor o clima de expectativa, a esposa Nancy chegou dias antes e as filhas Mary e Stella desembarcaram no Rio. A cereja do bolo era a enorme surpresa de uma participação especial de Ringo Starr – a presença do velho companheiro seria um modo de selar também o fim definitivo dos Beatles e ainda bem que ele não veio. Quem esteve no estádio ou viu pela TV manteve o coração apertado a cada música, sabendo que o sonho poderia ter chegado ao final.

A plateia, como sempre, estava dividida em todas as gerações existentes na face da Terra. Os mais velhos que testemunharam tudo e têm em Macca uma espécie de amigo boa-praça sempre de bem com a vida. Os cinquentões/quarentões invejosos da jovialidade do tiozão descolado. A molecada atordoada com o vô/biso que parece figura de videogame ou criatura de outro mundo. O ponto de interseção: todo mundo berrando as letras das canções como trilha sonora de suas vidas.

Sem contar a mágica que contamina todos com um inexplicável clima de felicidade, como se Macca fosse o senhor de um portal que mostra como o mundo poderia ser melhor. Ele até se permitiu ser filmado tomando água entre uma música e outra, desfazendo a lenda de que tocava o show inteiro (quase três horas) sem sequer molhar o bico. Como se não houvesse escurinhos entre as canções!

Há quem reclame que o repertório é praticamente o mesmo há muitos anos. Não deve ser tarefa fácil escolher 30 canções no meio de uma coleção de clássicos que marcaram a humanidade inteira, ainda mais de um artista que continua prolífico em sua criação artística – na última década foram cinco álbuns de inéditas, documentários e livros. E uma “nova” música dos Beatles.

O que se viu no Maracanã foi um dos maiores astros da música mantendo o posto de mestre aos 81 anos. É difícil economizar adjetivos diante de uma produção grandiosa, sala de estar para um espetáculo inesquecível em que Paul se fez acompanhar pela mesma banda impecável de muitos anos – Paul “Wix” Wickens (teclados), Brian Ray (baixo e guitarra), Rusty Anderson (guitarra) e Abe Laboriel Jr. (bateria), que se tornou uma presença cativante no palco. Para a turnê Got Back foi incluído o Hot City Horns, ótimo trio de metais formado por Paul Burton (trombone), Kenji Fenton (saxofones) e Mike Davis (trompete).

Impossível evitar queixos caídos, ainda mais com a embalagem luxuosa de uma iluminação capaz de remeter qualquer imaginação às naves espaciais mais incríveis. E para os amantes dos instrumentos musicais, um desfile de modelos clássicos de diversas marcas que construíram a música pop que temos aí. “Uma noite mágica e inesquecível! Compartilhar o show com meu filho Mateus, de 14 anos, fã dos Beatles desde que se entende por gente, foi realmente único. Fazer parte de um coral gigante – no templo sagrado do Maracanã – na canção Hey Jude foi emocionante e muito especial. No refrão, naquele mar de “na na na na”, eu, esposa e filho navegamos, cantamos e viajamos naquela melodia. Demais!”, rende-se o jornalista Carlos Alberto Barretto.

Do alto da figura superlativa que se tornou, o ex-Beatle oferece luxos ao público. Na música My Valentine, que compôs em homenagem à atual esposa Nancy Shevell, o telão exibiu os atores Natalie Portman e Johnny Depp fazendo tradução para libras em imagens cinematográficas num belíssimo preto e branco.

Em determinado momento do espetáculo, a multidão começou a gritar cada vez mais forte “Paul, eu te amo!” e, quando o homenageado disse não estar entendendo, mudou o idioma: “Paul, I love you!”. Encantado, respondeu que era recíproco.

Não adianta insistir com esse papo de que Let It Be se tornou um clichê do repertório. Aquela interpretação teve algo muito especial. Pela carga do show e momento da vida onde o fim da carreira é um elemento presente, talvez Paul tenha resgatado a ponte entre sua mãe Mary, que lhe apareceu em sonho e teria dito “Just let it be” (Só deixe estar), o momento difícil que atravessou com o iminente final dos Beatles quando a canção foi lançada e a mensagem que o futuro ainda não está definido e tudo ficará bem.

O último movimento da noite com a espetacular Golden Slumbers foi testemunhado por uma lua crescente no céu. Para diminuir a ansiedade diante de algum anúncio do tipo “o sonho acabou”, Paul foi taxativo: “Até a próxima. Fui!”. E o mundo Beatle foi ao delírio.

Confesso que os Galvão e eu ainda levamos um bom tempo até desligar as válvulas dos nossos velhos amplificadores emocionais. No trajeto para casa preferi deixar o rádio do carro desligado. A última música do show continuava na minha cabeça:

Antes havia um jeito de voltar para casa

Durma bem, querida, não chore

E eu vou lhe cantar uma canção de ninar

Não sei dizer se era tristeza, melancolia ou medo da perda que me acabrunharam até adormecer. Talvez fosse o fato de não saber se tinha testemunhado o último ato de uma história magnífica que contribuiu com a construção da melhor parte do que somos como sociedade. Afinal, os estádios lotam com uma torcida única para ouvir aquele sujeito cantar as mesmas canções imortais há 60 anos.

Diante dos rumores de que o fim seria anunciado, talvez tenhamos descoberto que ainda não estamos preparados para nos despedir de Paul McCartney. Oxalá esteja valendo o “Até a próxima. Fui!” que ficou ecoando no Maracanã, para felicidade da torcida única do time que faz a alegria da “cidade” chamada Terra.

Perfil Sir James Paul McCartney é muito maior do que o artista que o mundo conheceu em discos e shows a partir dos Beatles. Nascido em Liverpool, Inglaterra, em 18 de junho de 1942, tornou-se cantor, compositor, multi-instrumentista, produtor musical e cinematográfico, empresário e ativista.

No já longínquo 1979, o Livro Guinness dos Recordes registrou-o como o compositor musical de maior sucesso na história da música pop de todos os tempos. Sua empresa MPL Communications, que cuida dos seus interesses artísticos e econômicos, detém os direitos autorais de mais de 3 mil canções de diversos artistas.

Desde muito cedo tornou-se ativista de diversas causas sociais defendendo sem grande alarde mulheres, negros, indígenas, liberdade sexual, alimentação vegetariana, direitos dos animais, educação musical e condenando o uso de minas terrestres.

Paul sempre exibe a bandeira do movimento LGBTQIAP+ em suas apresentações motivado pelo fato de seu filho Ben ser um homem trans (nasceu Beatrice, do casamento com a modelo Heather Mills). Também inseriu a bandeira da Ucrânia no palco logo depois que o país foi invadido pela Rússia.

Mesmo dono de uma das maiores fortunas do showbiz e sendo uma das personagens mais famosas de todos os tempos, McCartney é um artista acessível que gosta do contato com fãs e não costuma se esconder em hotéis. Nos shows, jamais deixa de homenagear os grandes amigos Lennon e Harrison, bem como a ex-mulher Linda, e jamais se apresenta nas datas das suas mortes.

Mantém a pontualidade britânica nas apresentações, mas é flexível para atender a pedidos da produção para atrasar, como ocorreu em São Paulo e Belo Horizonte em razão de mau tempo e trânsito intenso.

É claro que a voz já não é a mesma de antes. Entretanto, ele jamais mexeu nas tonalidades originais das músicas ou reduziu o tempo das apresentações para facilitar a própria vida. Seu profissionalismo permanece inalterado, a ponto de chegar muitas horas antes ao local e passar religiosamente o som.

Na verdade, a passagem de som é um outro show que dura cerca de uma hora, inclui apenas músicas que não estão no setlist da noite e pode ser apreciada pelos fãs que conseguem entrar mais cedo no estádio.

Um dos seus princípios de excelência e respeito ao público é tocar as músicas da forma como foram gravadas, para que todos possam curtir as canções favoritas sem dificuldade de cantar junto. E de olho nas novas gerações, se mantém em completa sintonia com todas as inovações tecnológicas que surgem na indústria do entretenimento.

Há décadas é um ativo apoiador das artes. Mantém em Liverpool o disputado Institute For Arts (Lipa) e todos os anos entrega pessoalmente os diplomas aos alunos concluintes dos cursos. O show especial que realizou para 400 pessoas no Clube do Choro (em Brasília) só foi possível porque o local é ligado à Escola de Choro Raphael Rabello.

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