Foto: Cris Galvão
- Minervino Wanderley
Não sei se é “defeito de fábrica” ou se outros viventes também sentem isso. Só posso dizer que aqui e acolá me vem à cabeça – e ao coração – uma saudade de determinadas coisas que nunca aconteceram. São situações, pelo menos para mim, reais. Vou contar uma e espero, sinceramente, que alguém que ora lê isto sinta, ou já sentiu o mesmo. Lá vai:
Era uma noite domingo, chata por si só, e eu teimava em não dar por terminado um fim de semana e viver outra segunda-feira. Lá vem trabalho, chateação, trânsito, esses troços chatos e característicos desse dia.
Decidido a esticar a noite, fui até a Boate Bambelô, que ficava no Hotel Internacional dos Reis Magos. Lugar bonito e bem aprazível.
Lá chegando, reparei que tinha um cara numa daquelas mesas, que ficam sobre um gramado, antes da entrada da boate. Ele estava sozinho, tomando whisky, fumando e fazendo rodinhas com a fumaça. Quando passei por ele, esbocei um sorriso como cumprimento e foi aí que tive um baita de um susto. Plenamente justificado! Aquele solitário era ninguém menos do que Sérgio Endrigo.
Ora, esse magnífico compositor e cantor italiano já me fez cantar muito ‘Canzone Per Te’ – aquela que deu a Roberto Carlos o primeiro lugar no Festival de Música de San Remo, em 1968.
Mas eu conhecia muita coisa dele. ‘Io Che Amo Solo Te’, ‘Lontano Dagli Occhi ‘, ‘Tereza’, ‘Aria di Neve’, entre outras.
Aproximei-me e, como não sabia nada de italiano – a não ser as letras das suas músicas – falei em inglês:
– Desculpe se incomodo, mas não posso passar, vê-lo, e não falar nada.
Ele abriu um sorriso simpático e, gentilmente, apontou para a cadeira e disse:
– Sente-se, por favor.
Pedi logo um whisky duplo e puxei assunto. Perguntei por que ele estava em Natal e, ainda por cima, completamente anônimo. Ele respondeu:
– Li alguma coisa sobre a II Guerra que falava em Natal. Fiquei curioso e me lembrei de que Rita (Pavone) já tinha vindo ao Brasil e me falou que no Nordeste tinha praias e mulheres belíssimas. Assim, falei com meu agente e ele organizou essa minha viagem. Ele nada perguntou. Além de meu agente era meu amigo e sabia desses rompantes. E Rita estava coberta de razão. Essa região parece com a costa italiana, com a vantagem de ter poucos turistas. Agora me diga: como você me reconheceu, se não sou muito famoso nessa parte do Brasil?
– Acho que você está enganado. Roberto Carlos lhe apresentou ao Brasil inteiro em 1968, está esquecido? É bem verdade que só ‘Canzone Per Te’ se transformou em megassucesso. Mas tenho um amigo, Alex, que adora tudo que você faz e sempre que vamos ouvir músicas as suas surgem. Passei a ser mais um admirador seu.
Quem ficou admirado foi ele. Continuei:
– Sei que durante sua carreira, você fez – e faz – trabalhos com escritores e poetas como Gianni Rodari, Pier Paolo Pasolini, Vinicius de Moraes e Giuseppe Ungaretti e com músicos como Toquinho e Luis Bacalov. Sei até que você é nato da Croácia.
Demonstrou surpresa e riu muito por eu saber tanto da carreira dele e não escondeu a felicidade de ser conhecido num país tão grande – palavras dele. Daí em diante, já como “amigos”, foram incontáveis whiskies.
Pois bem, para fechar o antes enfadonho domingo, ele se levantou e, com um riso e um gesto, pediu-me para esperar. Não se passaram cinco minutos quando ele voltou com um violão. Ajeitou-se e perguntou- me o que eu queria ouvir. Claro que respondi um sonoro “Tudo!”, e então ele começou a liberar seu belíssimo repertório, delicadamente limitado às músicas que eu pedia.
Finalmente, já bêbados e felizes, trocamos um abraço. Em seguida, pediu papel e caneta ao garçom e escreveu:
“È stata una serata molto piacevole. Quando vai in Italia, cercami. Vivo a Firenze e sarà un piacere accogliervi. Un abbraccio,
Sergio Endrigo”
Tradução:
“Foi uma noite muito agradável. Quando for a Itália procure-me. Moro em Florença e será um prazer lhe receber. Um abraço,
Sergio Endrigo”
É ou não é motivo para ter saudade?
*MINERVINO WANDERLEY, jornalista e peladeiro