Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

HAYTON ROCHA Não custa tentar

Sofia Shultz/Pixabay

Não custa tentar

  • Hayton Rocha

Meu avô deve pensar que está em baixa na memória afetiva dos netos porque um deles passou o dedo em sua testa e brincou: “Vô, de Uber, dá 10 reais do cocuruto à ponta do seu nariz!”. E outro completou: “Vô é legal, mas mija de hora em hora!”.

Em meio à algazarra, imaginei o troco (com delicadeza, claro!): “Pois é… Tomara que um dia vocês também cheguem lá e escutem isso de seus netinhos…”. Creio que evitou polemizar para não parecer intolerante, agourando os ramos noviços de sua própria árvore genealógica.

Pensei em abraçá-lo e pedir que relevasse os gracejos de meus primos. Chega uma hora em que até a expansão desenfreada do desmatamento capilar, a próstata crescida e a velhice devem ser encaradas como conquistas. Mas me contive: ele nunca gostou dessa coisa de abraços (e beijos) em público, nem com minha avó.

Deveria haver um distintivo para compensar os avós contra os infortúnios a que estão sujeitos. Sei lá, uma tatuagem entre as sobrancelhas, como um estigma, que concedesse certos privilégios: garantia de acesso livre a cinemas, museus e teatros; proteção especial das autoridades constituídas; gratuidade nos correios para intercâmbio de livros com os sebos; disponibilidade de um ouvidor-geral para acolher e encaminhar queixas junto aos santos, dentre outros. Eis aqui uma dica de projeto de lei, com forte apelo popular.

Os netos de hoje andam cada vez mais espertos. Outro dia, na praia, ouvi um menino (8 anos, se muito) falando com o pai e fiquei impressionado. Sim, conversava com o pai, mas aposto que seja neto de alguém. Dizia do susto que tomara com a arrebentação de uma onda que lhe fizera engolir água salgada: “Pai, eu estava no raso, pensando na vida…”.

Só faltou filosofar sobre o sal e a doçura de viver; ou convencer seu pai de que, se não existe vida extraterrestre, a vastidão do Universo constitui um grande desperdício de espaço, algo incompatível com a inteligência divina. Mas não chegou a tanto, ainda bem! Foram apenas alguns goles de água salgada.

Se visse a cena, é provável que meu avô comentasse com a gente: “Ah, crianças, acreditem, eu só fui pensar seriamente na vida depois dos 30 anos, já casado e pai de três, quando resolvi largar o cigarro e beber menos. Ultimamente, me contento com duas ou três taças de vinho, em momentos cada vez mais raros. E lá se foram 35 anos em que não me dou o desfrute de três baforadas”.

Talvez acrescentasse, como li numa crônica que ele escreveu: “Até cinco ou seis anos atrás, todas as vezes em que tomava uma sopa em colheradas lentas, acompanhada de um pãozinho francês, batia saudade dos tragos que dei, daquela breve vertigem que me esfriava os dedos, deitado numa rede, a pensar na vida… Que vício desgraçado!”.

Desconfio de que a gozação por parte de meus primos seja reflexo do fato de terem nascido, assim como eu, com livre arbítrio para escolher para qual clube torcer, desde que fosse o Vasco. Nada demais para quem, desde a vida intrauterina, dormia embalado por uma canção de ninar que começava assim: “Vamos todos cantar de coração, a cruz de malta é o meu pendão…”.

Ano passado, recebi de meu avô uma mensagem cujo arremate me comoveu: “Assumo minha culpa por nunca ter dito de todo o amor que sinto pelos meus netos, sentimento que não impõe condições nem espera nada em troca, exceto, se não for querer demais, um sorriso e dois dedos de prosa, de vez em quando”.

E me aconselhava a, por enquanto, deixar de lado o futebol. Dizia que só no YouTube vou saber quem foram Romário, Edmundo, Juninho Pernambucano e Felipe, que fizeram a cabeça de meu pai. Assim como Dinamite, Andrada, Zanata e Geovane fizeram a dele. Ou como Ademir Menezes, Barbosa, Danilo e Ipojucan balançaram o coração de meu bisavô, que nem cheguei a conhecer.

Brincalhão – os netos tiveram a quem puxar! –, agora está me sugerindo conversar com meus primos para tentarmos um esporte menos estressante, como o muay thai (boxe tailandês). E fala de seu desgosto quando nos vê cabisbaixos, com celulares nas mãos até na hora do almoço.

“Tudo, menos celulares na mesa! Notem que já não vemos jogadores de futebol se abraçando após uma partida, como acontece com lutadores, que seguem amigos mesmo após uma sangrenta refrega onde cada um tenta acertar o outro com socos, cotoveladas e pontapés”, pondera.

Não custa tentar. Vou chamar meu avô para jogar xadrez, baralho, dominó ou pega-varetas com a gente. Quem sabe nos ajuda a refletir sobre o sal da vida e a doçura de ainda tê-lo entre nós.

*HAYTON ROCHA, escritor e blogueiro

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