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Não julgueis
- Flávio Rezende
O ato de julgar tudo e todos virou uma espécie de epidemia social, um comportamento complexo que parece alimentado pelo isolamento digital
É preciso tentar a todo custo não julgar. O tal do julgamento é uma ação inerente a todos os sapiens, obviamente em níveis diferentes, mas uma praga mundial que nos contamina profissionalmente, pessoalmente e espiritualmente.
O mundo digital nos impôs um grau de isolamento nunca visto, onde predomina a linguagem escrita ou gravada em áudios. Uma linguagem cada vez mais resumida a postagens construídas pela pressa reinante, com pouca flexibilidade e vocabulário sofrível.
A falta de convivência entre as pessoas termina suprimindo a oportunidade de se tratar as coisas com discussões justas amparadas por diálogos, olhares, entonações, facetas, fisionomias e afetos. Esse individualismo é cada vez mais cheio de consequências preocupantes até sob a óptica da saúde. Esse isolamento social que impede explicações de olho no olho acaba gerando uma suposta proteção para julgamentos apressados, injustos e raramente punidos. É o tempo da onipotência cega incapaz de ler o versículo de Mateus e compreender seu ensinamento: “Não julgueis para não serdes julgados. Porque com o juízo com que julgardes sereis julgados, e com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós”.
Pessoas pobres e pretas costumam sofrer pré-julgamento e são tratadas como bandidas por policiais. As minorias também não merecem “refresco” da sociedade, vistas por um crescendo que vai da desconfiança até o desprezo. Eleitores geralmente julgam como corruptos os políticos do lado oposto e não se envergonham de espalhar narrativas mentirosas e, sem qualquer filtro, repetir argumentos surreais contra os adversários. Religiosos chegam a externar julgamentos mentais sobre devotos de outras religiões como seres demoníacos e perigosos.
Em nosso cotidiano também vamos julgando tudo o tempo todo, incluindo sem qualquer constrangimento pessoas próximas ou distantes. Sem contar que boatos logo ganham tom de verdade para compor os “autos” que nos levam ao temido veredito do cancelamento. As feridas dos “réus”? Pouco importa.
As questões que envolvem religiosidade são um capítulo especial. Fico estupefato quando vejo pessoas defendendo Jesus e apoiando determinadas figuras e atos radicalmente opostos à pregação e ao legado do Mestre.
Aí me vejo como alguém que gosta de entoar o mantra Hare Krishna, mas como carne, jogo em loterias e adoro sexo, mesmo principalmente sem a única finalidade de procriar. Coisas que um Vaishnava não deveria fazer.
Se vou para o campo político, lembro da minha trajetória cheia de contradições. Fui de esquerda a vida toda, depois critiquei a esquerda, agora apoio novamente. Que moral eu tenho para julgar quem não pensa como eu? Muito menos posso transformar quem discorda em inimigo.
No futebol, torcia pelo América e virei casaca para seu maior rival, o ABC.
Ou seja, nos grandes temas que a prudência ensina não discutir – religião, política e futebol –, sempre estive aberto a mudar de opinião, como faço em vários assuntos, me permitindo guiar por entendimentos presentes e situações históricas.
Julgar é um babado complicado. Quantas pessoas julguei de uma maneira e, hoje, vejo de outra? Por isso trabalho meu dilema pessoal de evitar julgar, pois a régua sou eu e posso estar errado, a outra pessoa, certa. A vida tem me ensinado que é melhor gastar energia com amor, entendimento e conciliação, sempre tentando compreender contextos e o valor de amenizar conflitos. Ainda bem que tenho obtido alguns êxitos ao optar por mais amor e menos julgamentos.
Sonho em chegar ao ponto de não julgar absolutamente nada, fluir, ser feliz, deixar cada qual no seu cada qual. Pode ser utopia, mas não custa acreditar possível.
Que situação… Assim são as coisas como elas são. É assim que lido com essas coisas. Luz!
*FLÁVIO REZENDE, fotógrafo da vida