Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

HAYTON ROCHA Não sou eu…

Lothar Dieterich/Pixabay

Não sou eu…

  • Hayton Rocha

Três anos depois de tantos abraços reprimidos, de tanta angústia e de cinco doses de vacina, uma variante sorrateira do inominável bateu à porta e, sem pedir licença, se instalou sobre duas almas rendidas pelo pânico.

Passado o susto inicial (nem nos deu tempo de colocar detrás da porta um pouco de sal grosso), eu e minha mulher já estamos bem. Assumimos como inevitável o que aconteceu quando resolvemos deixar o cárcere voluntário.

Lembro-me de um livro (O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati) que ganhei de presente, em 1982, de meu querido amigo João Batista de Almeida. Reli trechos durante o confinamento. Difícil engolir que nunca mais verei João flanando nas livrarias. Nem nos despedimos.

O livro conta de um jovem que deixa sua cidade natal para assumir o posto de tenente numa fronteira desabitada. Tinha a esperança de fazer algo de nobre pelo seu país, que poderia ser atacado pelos tártaros, a qualquer momento.

Trinta anos depois, velho e doente, após esperar por uma guerra que não veio, o tenente reflete sobre quantos deixam a vida passar esperando um conflito que talvez não venha e, se vier, pode encontrá-los já derrotados. E divaga sobre se a guerra de cada um de nós já não se dá todo dia, embora muitos, em busca de algo maior, nem se deem conta disso.

Em minha guerra particular, parecia fácil acordar às quatro e meia da madrugada e caminhar solitário no silêncio de meus barulhos, tropeçando nas quinas que se metiam no caminho entre a cozinha e a varanda onde os primeiros sinais de luz diziam que a agonia passaria depressa.

Parecia normal trocar o noticiário mórbido da TV pelas canções de ontem, admitindo uma certa alienação sobre o horror instalado no desmantelo da hora. Diminuía a ansiedade ouvir Simone cantar propondo que pegasse aquele feijão preto, colocasse meia dúzia de louras pra gelar e mudasse a roupa de cama que já, já, a vida estaria de volta.

Parecia simples preparar a própria comida sem despencar na rotina de sal, gordura e limão, depois de limpar a última ruga da folha de alface ou rúcula, como se ali cochilasse o monstro capaz de acabar com tudo em duas ou três semanas.

Parecia fácil ver a mulher na varanda, resignada, sem botar os pés na areia havia meses – nem mesmo para afogar nossos netos de abraços e beijos salgados de lágrimas –, longe das franjas de espuma que escorriam na praia, querendo pegar uma cor ou fazer um cabelo bonito pra eu notar.

Ou vê-la disposta a dar uma geral, fazer um bom defumador, encher o cárcere de flor para, de tardezinha, os olhos boiarem diante de uma cena qualquer do seriado da vez.

Parecia normal ver tantas crianças longe da sala de aula, cujos pais, prisioneiros de suas próprias incertezas, não sabiam como, sem os dilemas do convívio na escola, lhes ensinar os deveres de casa em matérias críticas como amar e perdoar.

Ou – em meio a tanta mentira, tanta força bruta escorrendo nas redes sociais! – deixar de ir à padaria, ao cinema, ao boteco, ao supermercado ou ao restaurante, onde incautos se infectavam e, não raro, sumiam. De vez.

Parecia fácil, normal, simples. É… Parecia.

Toda noite, me deitava mais cedo, não para dormir o sono represado dos madrugadores, mas para mergulhar nas águas de oceanos nada pacíficos já navegados por velhos lobos do mar como Braga, Cony, Nelson, Ruy, Sabino, Ubaldo e Verissimo.

Mesmo isolado do mundo (que já cheirava, de novo, a fumaça de óleo diesel), me inspirava nesses marujos para rascunhar meia dúzia de linhas e tirar a paciência daqueles que ainda prestavam atenção naquilo que eu tinha a contar.

“Talvez o mundo não seja pequeno, nem seja a vida um fato consumado”, dizia Chico, outro marujo calejado. Mas enquanto não chegava o habeas corpus que me libertaria do cárcere, precisava refletir sobre como pegar os novos ventos e velejar bem longe de meu porto seguro até descobrir onde tudo isso vai dar.

Ainda não descobri, mas uma hora chego lá.

Hoje, mais do que ontem (e menos do que amanhã), quanto mais remo, mais rezo. E me contento ouvindo Paulinho, outro velho lobo do mar, extrair da viola uma certeza em forma de oração: “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”.

*HAYTON ROCHA, escritor e blogueiro

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