Por Heraldo Palmeira
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3 de dezembro de 2024

O 13 da sorte

Reprodução/Gabriel Bouys/AFP

O 13 da sorte

  • Heraldo Palmeira e Sylvio Maestrelli

O número 13 sempre esteve ligado a lendas e crendices. Nos EUA, é difícil encontrá-lo na vida cotidiana – até nos andares de prédios e, consequentemente, nos botões dos elevadores, que “saltam” de 12 para 14. No Brasil, é elemento antigo da superstição popular e ganhou fama com os 13 pontos da Loteca, uma das primeiras loterias oficiais da Caixa, criada a partir de jogos de futebol.

Zagallo nasceu (13 letras) alagoano em Atalaia, cidade próxima da capital Maceió, em 9 de agosto de 1931. Batizado Mário Jorge Lobo Zagallo, saiu de lá aos oito meses de idade. Ganhou o mundo a partir do futebol e desenvolveu a mania de associar sua vida e a ideia de boa sorte ao número, que terminou virando verdadeiro folclore. “O 13 veio aliado à minha esposa, que era devota de Santo Antônio. Sinônimo de fé” garantiu em entrevista, lembrando o dia (13 de junho) dedicado ao santo católico.

Não resta dúvida de que Zagallo foi um ponta-esquerda aplicado. Como diziam torcedores mais antigos que o viram em ação, o Formiguinha tinha bom preparo físico e sempre foi importante taticamente. Jamais um craque da posição, do tipo que encantava torcidas.

Embora tenha assumido a paternidade do ponta que voltava para marcar e jogava mais recuado, a verdade é que essa tática – hoje tão comum no sistema 1-4-3-3 – tem outra origem. O Flamengo jogava no sistema tradicional (1-4-2-4) e seu treinador, o paraguaio Fleitas Solich, lançou o disfarce tático do 1-4-3-3, algo próximo do que o húngaro Bela Gutman implantaria logo depois no São Paulo e seria aperfeiçoado por Vicente Feola na Seleção campeã de 1958 – esse homem teve também a audácia de contrariar a CBD e bancar a convocação de Pelé, que havia se contundido pouco antes do embarque para a Suécia.

A questão das paternidades sempre esteve presente no capítulo das polêmicas na vida do Velho Lobo. No jogo contra o Uruguai na Copa 1970, a Celeste abriu o placar e a maldição do Maracanazzo começou a rondar a Canarinho. De repente, Gérson e Clodoaldo trocaram de posição no meio-campo, isso confundiu os adversários, Corró passou a atuar como se fosse mais um atacante, empatou o jogo e tudo mudou. Zagallo passou o resto da vida afirmando que a mudança tática durante o jogo foi ideia dele, exatamente o contrário do que sempre disse o Canhotinha de Ouro, assumindo essa decisão – ele era um dos cardeais do time, acostumado a organizar o jogo em todos os clubes por onde passou.

Também insistia em dizer que foi o responsável pela afirmação de Zico no Flamengo, algo que começou a acontecer – um ano antes da sua chegada como treinador – pelas mãos do mesmo Solich (do esquema tático 1-4-3-3-). Quem deu a titularidade da camisa 10 ao Galinho foi Joubert Meira. Zagallo costumava escalar o menino em várias posições, como se desejasse evitar sua estabilidade no esquema de jogo do time. Muitos afirmam que o fato de o garoto já mostrar aquele futebol espetacular incomodava o vaidoso técnico – uma de suas características marcantes foi nunca lidar bem com grandes estrelas.

Quem analisa sem paixão a trajetória de Zagallo não consegue negar uma mitificação da mídia que muitas vezes soa exagerada. É evidente que a careira dele na Canarinho é vitoriosa. Basta computar que esteve presente em sete Copas do Mundo, um dado dos mais respeitáveis nos registros da FIFA. Talvez pelos títulos conquistados com a Amarelinha e por seu trânsito especialmente junto à bairrista imprensa carioca – sempre pronta a agradar à CBD/CBF, siglas onde ele se aboletou com intimidade nas engrenagens da burocracia do futebol –, tenha sido superestimado. Afinal, jamais visto como craque nos campos, virou técnico e foi bastante questionado durante toda sua carreira. Como esquecer a gastura que se estabelecia ao redor de sua presença em qualquer momento profissional? A postura impaciente, beligerante, a voz sempre um tom acima do necessário? Afinal, vivia dando explicações e quase nunca era pelo brilhantismo dos seus times. A história toda está aí, bem recente.

No meio de fracassos históricos e de tantas controvérsias, qualquer verificação rápida faz surgir outra verdade inquestionável: no futebol brasileiro, ele só treinou um único time fora do Rio de Janeiro, a paulista Portuguesa de Desportos (1999). Nessa passagem não há qualquer motivo de registro especial, já que o time terminou o estadual em quinto lugar, a região da tabela que costumava frequentar. A maior recordação que ele próprio registrava do período era a torcida gritando no Canindé “1, 2, 3, Zagallo é português”. Convenhamos… E mesmo tendo treinado todos os grandes times cariocas, com exceção de ganhar a Taça Brasil 1968 (arremedo de campeonato brasileiro da época), título dividido com o Santos, jamais conquistou qualquer outra competição relevante de clubes em nível nacional ou internacional.

Zagallo tinha 18 anos quando deu seus primeiros passos como profissional no América do Rio (1948), sendo contratado pelo Flamengo em 1950. Naquele período, os maiores ídolos do clube eram o paraguaio Benítez, além dos inesquecíveis Rubens (o Doutor Rúbis, como carinhosamente era chamado pela sua elegância no trato com a bola), Dequinha e Pavão – homenageados por Wilson Batista no Samba Rubro-Negro –, e os jovens talentosos Joel, Dida e Evaristo. Na Gávea, conquistou um tricampeonato carioca (1953-1954-1955), no primeiro ano como reserva de Esquerdinha, nos outros revezando a titularidade em algumas ocasiões com Babá. Tempos gloriosos em que a festa ficava por conta da Charanga Rubro-Negra, também citada no samba, fundada em 1942 pelo torcedor apaixonado Jaime de Carvalho e primeira torcida organizada do país.

Para a Copa do Mundo 1954 o técnico Zezé Moreira sequer o incluiu entre os 40 jogadores inicialmente convocados, numa lista onde estavam alguns flamenguistas: o zagueiro Servílio e o ponta Joel (cortados), o volante Dequinha, o armador Rubens e o centroavante Índio, que foram à Suíça como reservas.

Só teve sua primeira chance na Seleção Brasileira com Vicente Feola, em 1958, nos amistosos contra o Paraguai e a Bulgária antes da Copa da Suécia, ambos jogados no Maracanã. Era um dos três pontas-esquerdas pré-selecionados, ao lado de Pepe e Canhoteiro, os dois que vinham alternando a titularidade no Escrete Canarinho desde 1956. Tanto que a imprensa cravava que eles estariam na Copa e que o flamenguista seria cortado.

Uma combinação de fatores levou Zagallo não apenas ao Mundial, como lhe proporcionou a possibilidade de ser titular e campeão do mundo. Em primeiro lugar, segundo os cronistas da época, especialmente do Rio de Janeiro, uma certa falta de garra era atribuída a Canhoteiro, que, embora fosse chamado por Didi de “o Garrincha da esquerda”, driblava em demasia e não tinha uma regularidade de atuações que despertasse confiança da comissão técnica. Cortado o ponta são-paulino, ficaram Pepe e Zagallo. Competência ou sorte?

A seu favor o entrosamento com todo o ataque convocado, que pertencia ao Flamengo [Joel, Moacir, Dida e ele (só faltou Evaristo, que foi jogar no Barcelona, não liberado pelo clube porque a Espanha caíra nas Eliminatórias e o campeonato do país prosseguiu durante o Mundial). Mazzola ocupou a vaga de centroavante].

Mesmo assim, quando o Brasil rumou à Europa para fazer os dois últimos amistosos antes da Copa contra os italianos Fiorentina e Internazionale, Pepe era o titular. Até que, no jogo contra a Inter, uma entrada criminosa do meio-campista Mauro Bicicli no tornozelo do santista o tirou de cena. Zagallo ganhou a posição, jogou bem desde a estreia contra a Áustria – inclusive fez nosso quarto gol (de bico) nos 5×2 da final contra os suecos – e faturou sua primeira Copa do Mundo. Competência ou sorte?

Voltando ao Brasil, sob a alegação de que recebera ofertas financeiras muito compensadoras do Palmeiras e da Portuguesa, para continuar na Gávea o Velho Lobo cobrou dos dirigentes flamenguistas a solução da oferta que fizera: um emprego na Caixa Econômica Federal em troca do seu passe – entendia como forma segura de garantir a sobrevivência quando parasse de jogar bola –, ou que igualassem ou cobrissem uma proposta que o Botafogo lhe fizera. Na verdade, mudar para São Paulo estava fora de cogitação porque a esposa Alcina de Castro perderia o emprego de professora. “Eu não queria sair do Flamengo. O Fleitas Solich e o diretor Fadel vieram até minha casa, conversaram comigo. Me lembro até hoje as palavras que disse: ‘eu não estou querendo sair, eu já tinha proposto a vocês que eu dava o meu passe em troca de um emprego na Caixa Econômica, que era a minha garantia de futuro”, afirmou em entrevista.

Como o Flamengo não tomou as providências desejadas por ele, naquele mesmo 1958 se transferiu para o time da estrela solitária, passando a jogar ao lado de craques como Garrincha, Nílton Santos, Didi, Quarentinha e do garoto Amarildo. Como jogador do alvinegro, além de conquistar alguns torneios internacionais, foi bicampeão carioca (1961 e 1962) e ganhou dois torneios Rio-São Paulo (1962 e 1964), sendo que, em 1962, o Santos (melhor time do mundo da época) não participou da disputa, e em 1964 o título foi dividido com o próprio Santos por falta de datas para um jogo de desempate. Em General Severiano Zagallo repetiu a trajetória que teve na Gávea e continuou lembrado pela disposição física, jamais como protagonista ou por partidas memoráveis.

Mas o Velho Lobo tinha estrela! Seguiu convocado regularmente para a Seleção, quase sempre na reserva de Pepe em torneios oficiais e amistosos no período entre 1958 e 1962. Em maio (a Copa no Chile seria em junho), o Brasil era favorito e seu ataque composto por Garrincha, Didi, Coutinho, Pelé e Pepe. No último amistoso antes da Copa (contra o País de Gales, no Pacaembu), Coutinho se lesionou e Vavá ganhou sua posição. Pepe, por sua vez, torceu o joelho em um jogo-treino no Morumbi.

Coutinho e Pepe até se recuperaram parcialmente durante o Mundial. Mas como Pelé também se contundiu no segundo jogo, contra os checos, o técnico Aymoré Moreira optou por aproveitar o entrosamento e escalar o ataque botafoguense (Garrincha, Didi, Amarildo e Zagallo), com o matador palmeirense Vavá de centroavante.

Coisas do futebol, o maior ataque do mundo na época (Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe), que seria o primeiro bicampeão mundial interclubes da história logo depois, ficou na reserva. E Zagallo novamente se tornou titular, jogou bem, foi bicampeão com todos os méritos e fez parte da Seleção da FIFA da Copa. Sorte e competência.

Os gozadores de plantão faziam farra apontando a razão do azar repetido de Pepe: Zagallo batia tambores, apelava para outras mandigas e terminava ganhando a posição de titular. É de pensar que os santos não deram bola para os 776 jogos e 433 gols marcados pelo Canhão da Vila, 27 na Seleção (em 16 anos de carreira), contra os 541 jogos e 80 gols marcados, 5 na Seleção (em 17 anos de carreira do Velho Lobo).

Ele defendeu o Brasil até 1964, mas em muitos jogos ficou na reserva… de Pepe. Pendurou as chuteiras em 1965, no Botafogo, e no ano seguinte já era treinador do clube. Como técnico e com um timaço nas mãos (Gérson, Jairzinho, Roberto, Leônidas, Carlos Roberto, Rogério, Paulo Cézar Caju) foi bicampeão carioca em 1967 e 1968 e da Taça Brasil 1968, o que lhe deu visibilidade e pesou fortemente na sua ida para o comando da Seleção Brasileira.

A Taça Brasil estava esvaziada, já que Palmeiras e Santos, os representantes paulistas (e favoritos) não disputaram o torneio, assim como o Grêmio, campeão gaúcho. No Robertão (que se tornara o real campeonato brasileiro) de 1967 e 1968, mesmo com vários craques no Botafogo Zagallo fracassou, sequer levando o time aos quadrangulares finais. Palmeiras e Santos, respectivamente, foram os campeões.

Em 1969, sob o comando do marechal-presidente Costa e Silva, o regime militar estava enfrentando grandes protestos contra o famigerado AI-5 e rumores de corrupção em vários setores. Além disso, a péssima campanha na Copa da Inglaterra (1966) deixara um rastro de desânimo popular que não interessava ao governo.

A paixão pelo futebol era um componente importante da identidade nacional, fazia parte do contexto político e social e os militares decidiram não perder a oportunidade de utilizar a Seleção como instrumento de manipulação da opinião pública. Eles perceberam que embalar o jogo como produto oficial poderia ser um grande aliado para angariar a simpatia da população e abafar as vozes opositoras.

Era preciso tomar providências e eles não mediram esforços para desenvolver um grande projeto em busca da vitória na Copa, aplicando conhecimentos científicos inovadores para melhorar o desempenho físico dos convocados, como o estudo fisiológico individual. De quebra, uniformes foram redesenhados para dar mais conforto, não acumular suor no colarinho e feitos sob medida para cada jogador. As dependências do Exército sediaram a preparação física do elenco, realizada sob o comando dos militares Admildo Chirol, Cláudio Coutinho e Carlos Alberto Parreira, vinculados à Escola de Educação Física do Exército.

O presidente da CBD João Havelange, aliado civil de primeira hora, não criou qualquer dificuldade para que a máquina administrativa da confederação fosse ocupada por oficiais e simpatizantes. Para fechar o cerco, o major Ipiranga dos Guaranys foi designado para o comando da segurança e o major-brigadeiro Jerônimo Bastos assumiu a chefia da delegação. Estava em pleno desenvolvimento uma espécie de operação “pão e circo” para encantar a opinião pública com um título ainda inédito no futebol.

Carregada de história e troféu desportivo mais importante do mundo, a icônica Taça Jules Rimet ficaria em definitivo com o primeiro país que conquistasse um tricampeonato em Copas. Estariam no México concorrendo diretamente conosco Itália e Uruguai, também bicampeões mundiais.

Naquele momento, o técnico era Aymoré Moreira e um dos maiores críticos da Seleção era exatamente o jornalista João Saldanha. Militante político, comunista de carteirinha – era filiado ao então clandestino Partido Comunista Brasileiro, o Partidão –, foi desafiado a trazer a solução. E sua nomeação para o comando da Seleção Brasileira poderia soar também como um gesto de boa vontade e um armistício com a esquerda.

Os críticos começaram a duvidar do seu conhecimento para o cargo, esquecendo da sua convivência e aprendizado de tática com o técnico húngaro Dori Kürschner, para quem serviu de intérprete no Botafogo (1939 a 1940), onde também atuou como jogador nas categorias de base. Pouco depois de assumir a carreira de jornalista já era considerado um dos principais analistas de futebol no Brasil. Com sua capacidade de enxergar o jogo gerou a impressão de que seria mais competente do que a maioria dos técnicos em atividade. O mesmo Botafogo já havia comprado a ideia antes e ele estreou como técnico em 1957, ganhando o Campeonato Carioca e permanecendo no cargo até 1959.

Claro que aquela relação inusitada com os militares era um barril de pólvora, já que Saldanha não fugia de um bom enfrentamento para defender suas convicções. Basta considerar que sua família esteve envolvida na Revolução de 1923 entre Ximangos e Maragatos no Rio Grande do Sul, onde o menino de seis anos ajudava no contrabando de munição entre Brasil e Uruguai. Aos 11, pichava palavras de ordem em muros.

João Sem Medo – denominação precisa que ganhou do genial cronista e dramaturgo Nélson Rodrigues – havia revolucionado a linguagem da crônica esportiva pela sua capacidade de síntese, falando e escrevendo de forma simples. Sucesso absoluto de audiência, se comunicava como se estivesse numa prosa de pé de ouvido com ouvintes e leitores. Era uma voz que chegava sem dificuldade aos então 90 milhões de brasileiros, virtude que interessava muito ao governo naquele momento.

Já tinham acontecido duas sondagens anteriores até que Saldanha recebeu em casa, em Ipanema, o dirigente Antônio do Passo. O anfitrião perguntou “É convite ou sondagem?” e Passo respondeu “Convite”. E o compromisso foi selado: “Topo!”. O capitão José Bonetti, membro da comissão técnica da CBD e famoso por ajudar jornalistas perseguidos pela ditadura, acrescentou: “O general conhece tudo de você, mas ele quer isso mesmo, ele quer uma aproximação popular”. Era fevereiro de 1969.

Na primeira coletiva já mandou um petardo: “Que canarinhos, que nada! Comigo serão 22 feras em campo”. Ele montou um timaço e classificou brilhantemente o Brasil, invicto, àquela Copa tão especial. Para não deixar dúvida sobre quem realmente montou o escrete, esta é a lista dos convocados por Saldanha (média de idade de 24,5 anos):

Ado e Leão (goleiros). Carlos Alberto, Zé Maria, Everaldo e Marco Antônio (laterais). Brito, Baldocchi, Scala e Joel Camargo (zagueiros). Piazza, Clodoaldo, Gérson, Rivellino, Dirceu Lopes e Pelé (volantes e meias). Rogério, Jairzinho, Tostão, Toninho Guerreiro, Paulo Cézar Caju e Edu (atacantes).

Conhecido pela intolerância com jogadores barbudos ou que ostentavam cabeleiras, especialmente as black power, com a Copa se aproximando começou a colecionar novas polêmicas. Afirmou que Pelé estava jogando mal por um problema de visão que nunca se confirmou. “O negão tem um problema muito sério!”, revelou, em tom grave, na televisão. “O crioulo está ficando cego”, segredou a amigos, como se estivesse justificando um possível e impensável corte do Rei do Futebol. Era mais um drama que se abatia sobre o time, já que Tostão enfrentava seu próprio e preocupante problema na visão, depois que uma bolada desferida pelo zagueiro corintiano Ditão provocou o deslocamento da retina do seu olho esquerdo, que o levou para tratamento em Houston (EUA), gerando um afastamento de seis meses dos gramados e a ameaça de corte e até de cegueira.

No território extracampo, o técnico do Flamengo Yustrich, conhecido como “Homão”, também encrenqueiro profissional, resolveu criticar a Canarinho depois de uma derrota. Saldanha foi parar na concentração do rubro-negro, revólver na cinta, para “esclarecer” as coisas. Sorte que o desafeto não estava.

Na verdade, os militares não conheciam Saldanha como imaginavam. Navegando em alta popularidade e mais João Sem Medo do que nunca, o treinador usou a visibilidade do cargo para questionar o ambiente de repressão, perseguições, torturas e mortes que estavam ocorrendo no país, cobrando diretamente o governo.

Mostrou-se muito mais João Sem Medo quando foi ao México em janeiro de 1970 para conhecer as instalações que abrigariam a delegação brasileira. Na programação da viagem também constava o sorteio dos grupos da Copa, numa solenidade realizada no luxuoso Hotel Maria Isabel, que também serviria de sede da FIFA durante o Mundial. Aproveitando a ampla cobertura da mídia internacional, distribuiu um dossiê que denunciava as atrocidades cometidas pelos militares brasileiros, incluindo os nomes de mais de 3 mil presos políticos, 300 torturados e desaparecidos e “não sei quantos mortos”. Também concedeu diversas entrevistas a respeito e o jornal francês Le Monde publicou matéria bombástica a respeito do assunto, que permanecia proibido no Brasil e rigorosamente controlado pela censura.

Desde que o general Emílio Médici assumiu o governo a manutenção de Saldanha no cargo ficou insustentável. “Era o Brasil em plena ditadura militar, sempre trabalhando aquela coisa ufanista e querendo usar o futebol para camuflar o que estava acontecendo nos porões do regime. Se ganhasse a Copa sob o comando de João, como que ficaria? Um comunista traria a Taça Jules Rimet na mão? João se tornou um problema de Estado. Era preciso tirá-lo dali”, avalia o jornalista e escritor André Iki Siqueira, biógrafo do treinador.

O cronista esportivo Armando Nogueira publicou no Jornal do Brasil que o presidente Médici era fã do atacante Dario “Peito de Aço”, centroavante limitado e muito popular pelas tiradas engraçadas, e havia confidenciado a um subalterno que gostaria de ver o jogador convocado como reserva.

Perguntado a respeito por um jornalista em Porto Alegre, Saldanha gastou ironia: “Eu e o presidente, ou o presidente e eu, temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos. Somos gremistas. Gostamos de futebol. E nem eu escalo ministério e nem o presidente escala time. Você está vendo que nós nos entendemos muito bem”.

A demissão aconteceu duas semanas depois da frase sobre as escalações de ministros e jogadores de futebol, que se tornou histórica pelo contexto. Faltavam 87 dias para a estreia do Brasil na Copa do México. Até hoje, há quem garanta que essa questão foi plantada, que o ditador jamais tentou interferir na lista de jogadores, era apenas uma estratégia para criar o ambiente para o anúncio da dispensa de Saldanha, já que a decisão havia sido tomada semanas antes em razão das denúncias feitas durante a visita precursora ao México.

Depois de um amistoso pré-Copa com o fraco Bangu, que terminou 1×1, o mesmo diretor da CBD Antônio do Passo informou: “João, a comissão técnica está dissolvida”. A bola nem quicou: “Não sou sorvete para ser dissolvido. Passar bem!”. E lá se foi João Saldanha reassumir o posto de “comentarista mais ouvido do Brasil”. Estava de volta a um terreno onde também jogava como craque.

Numa das últimas vezes que tocou no assunto da demissão, resumiu: “A pressão foi ficando insuportável. Por gente da própria CBD e da ditadura. Era difícil tolerar um cara com longa trajetória no Partido Comunista Brasileiro ganhando força, debaixo da bochecha deles”. Demonstrando plena certeza da origem do episódio, não deixou pedra sobre pedra: “Considero Médici o maior assassino da história do Brasil. Ele nunca tinha visto o Dario jogar. Aquilo foi uma imposição só para forçar a barra. Recusei um convite para jantar com ele em Porto Alegre. Pô, o cara matou amigos meus. Tenho um nome a zelar. Não poderia compactuar com um ser desses”.

O primeiro treinador convidado para substituí-lo foi seu amigo Dino Sani (volante campeão mundial em 1958 como reserva de Zito), que recusou o convite. Também era homem de temperamento forte e não admitiria pressões e palpites políticos. Então – que sorte! –, o político e prestativo Zagallo assumiu o cargo. Coincidência das coincidências, sua primeira providência foi convocar Dario. Talvez para não dar muito na cara, chamou três novos jogadores – Fontana, Roberto e Félix.

Seria justo afirmar que foi um agrado do novo treinador ao ditador de plantão, que adorava posar nos estádios com radinho de pilha colado ao ouvido? Nem vem ao caso o fato de Dario sequer ter ficado no banco de reservas durante os jogos da Copa. Perambulava nos treinos e na concentração com a nobre missão de divertir todo mundo com suas tiradas espirituosas. Missão cumprida.

O timaço denominado Feras do Saldanha foi modificado um pouquinho para pior, rebatizado Formiguinhas do Zagallo e conseguiu o caneco naquela considerada a Copa das Copas. Foi o momento mais reluzente do 13 da sorte.

Reza a lenda que os cardeais de incontestável liderança (Gerson, Pelé e Carlos Alberto) empurraram muitas aberrações convocadas para segundo plano, mas não podemos ignorá-las. O tosco Dario, autointitulado “Beija-Flor” (dizia parar no ar, levinho, depois de diminuir o próprio peso com masturbação no vestiário) e “Dadá Maravilha”, mandou para casa Toninho Guerreiro, parceiro de Pelé no ataque santista, cortado por sinusite! Os outros dispensados foram Dirceu Lopes, Scala (alegada contusão) e Rogério.

Por alguma razão sobrenatural deixou o excelente quarto-zagueiro Joel Camargo no banco e recuou o volante Piazza para a posição. Talvez movido pela obsessão de valorizar a forma com que jogara, “inventou” Rivellino como ponta-esquerda recuado sem permitir que Edu, o melhor ponta-esquerda brasileiro da época, jogasse um único minuto no México. Claro que não há discussão sobre a convocação do Garoto do Parque, ele jogaria bem até de zagueiro. Mas Edu foi preterido quando Riva não pôde jogar em favor de Paulo Cézar Caju, outro meia-esquerda sensacional obrigado a se fantasiar de ponta recuado.

Os ventos dos corredores obscuros da época sopravam que Eduzinho (irmão de Zico) foi ignorado porque a família Antunes não era exatamente um xodó dos militares – Nando, o segundo dos filhos homens do velho Antunes, sofreu perseguição política da ditadura e preferiu abandonar a carreira no futebol para não prejudicar os irmãos mais novos. Mesmo assim, o então promissor Galinho foi preterido para as Olimpíadas de Munique (1972). Afonsinho, outro “esquecido”, era marcado por defender o direito trabalhista dos atletas e teria se recusado a raspar a barba e cortar o cabelo para ser convocado.

E lá se foi a Canarinho para o México com o país embalado pela música-tema Pra Frente, Brasil (de Miguel Gustavo e Raul de Souza, gravada sob o comando do trombonista pela Orquestra da Rádio Globo), sem a menor ideia de que daria um dos maiores espetáculos futebolísticos de todos os tempos. Era evidente que a Seleção viajou muito preparada técnica e psicologicamente, resultado da soma de treinamentos militarizados, uso da ciência para aprimoramento técnico e futebol-arte. “A questão tática daquele time era autoria exclusiva do Zagallo. Ele quem criou aquela maneira de jogar. A filosofia era ter uma equipe compactada. Realmente um visionário, porque há 50 anos ele já pensava como os treinadores pensam hoje. Já dava inclusive responsabilidades para os jogadores sem a bola. Todos jogavam dentro de um coletivo”, afirmou Parreira com tom reverencial ao velho amigo.

Um amigo do Giramundo não deixa por menos: “Ganhamos maravilhosamente aquela Copa, apesar do Zagallo!”. Diante do que o mundo viu acontecer em campo, fica difícil duvidar que aquele time seria campeão até sem técnico.

Era compreensível o interesse dos militares. Segundo levantamento do jornalista e escritor Elio Gaspari, entre 1964 e 1968 as denúncias de torturas apresentadas por presos políticos chegaram a 308 casos. Alcançaram 1.027 em 1969 e o ápice veio em 1970, com 1.206 registros.

Em certo trecho do livro Pelé: A Autobiografia, temos uma pista: “A certa altura da nossa preparação, ele (o capitão Cláudio Coutinho, preparador físico) havia dito que era importante vencermos porque isso acalmaria o povo”. A euforia da população com a conquista do tricampeonato abafou esses números e, como a Copa foi a primeira com transmissão ao vivo, via satélite, o espetáculo foi visto em todo o território brasileiro, consolidando o conceito de integração nacional tão caro aos militares. Assim, eles puderam transferir o êxito nos gramados mexicanos para o conceito de uma nação vitoriosa. De quebra, consolidou o perfil de país do futebol depois que aquela Seleção passou a ser considerada a melhor de todos os tempos. Éramos o tal “País de Chuteiras” – mais uma definição genial de Nélson Rodrigues – com o peito estufado!

Como a música sempre esteve no nosso DNA, a ditadura também se apoderou da canção ufanista Eu Te Amo, Meu Brasil, (escrita pelo cantor Dom, da dupla Dom & Ravel, sucesso da banda Os Incríveis), lançada no fim do ano.

Tostão, um jogador com nível de formação incomum ao mundo do futebol – era médico –, também reconhecido por suas posições políticas, tem uma visão ampla a respeito daquela campanha. Ele começa explicando a motivação dos convocados: “Alguns extremistas criticam os jogadores por não terem se rebelado contra a ditadura, como se fôssemos ativistas políticos e tivéssemos que abandonar a Seleção. Éramos todos jovens, sonhadores, ambiciosos, compromissados com a nossa carreira e loucos para ser campeões do mundo. Nada mais humano”. E chega ao epílogo daquela sua vivência: “Após a Copa, logo ao chegar ao Brasil, fomos para Brasília para sermos recebidos pelo presidente Médici. Era o auge da ditadura que eu tanto detestava, e não queria comparecer. Pensei muito, racionalizei que era preciso ir e que eu não podia confundir política com esporte. Arrependo-me de ter ido, pois era a oportunidade de mostrar a minha indignação como cidadão”. Um desabafo raro no grupo que esteve no México.

Passo seguinte, com a base tricampeã, mas já sem Pelé, Gérson e Carlos Alberto, Zagallo conquistou um torneio batizado de Taça Independência/Minicopa, realizado no Brasil para comemorar o sesquicentenário da Independência, em 1972. Estiveram presentes 20 países e vencemos a final contra Portugal (1×0). A Seleção foi campeã sem convencer.

Ele também foi campeão carioca com o Fluminense e continuou dirigindo a Seleção até a Copa 1974, dominada por timaços como a Holanda de Cruyff, Krol e Neeskens e a anfitriã Alemanha Ocidental de Beckenbauer, Breitner, Müller e Maier.

O ambiente não era bom para Zagallo. Choviam críticas pelos maus resultados e dizia-se que muitos medalhões de 1970 se afastaram em razão do rígido regime de concentração determinado pela comissão técnica. Osvaldo Brandão quase assumiu seu lugar. “Ninguém é vitalício na comissão técnica. Se achar, como em 70, que devo mudar, eu mudo”, chegou a vociferar o mandachuva da CBD João Havelange.

Poucos dias antes da estreia da Canarinho, a imprensa alemã vaticinava em manchete “O treinador Zagallo está desesperado. Ele está sem saber o que fazer”. Mesmo sem alguns craques de 1970 e com outros problemas de contusão, o Velho Lobo manteve o estilo ufanista, distribuindo grosserias e subestimando adversários em suas entrevistas. Ficou famosa sua arrogante declaração “A Holanda é muito tico-tico no fubá, que nem o América dos anos 50”. Achando pouco, quando ficou definida a semifinal contra os holandeses não perdeu a pose: “O time deles é bom, mas os holandeses não têm tradição em Copas e isso pesa. A Holanda não me preocupa. Estou pensando na final com a Alemanha”. Caímos exatamente contra a Laranja Mecânica que encantava o mundo todo, mas não convencia nossa “lenda”. Incompetência ou azar?

Outros equívocos graves podem ser atribuídos ao treinador. Clodoaldo, titular absoluto, pediu para ser poupado de um jogo-treino em Basiléia por não estar em plena forma física, mas foi escalado. Lei de Murphy em ação, sofreu uma distensão muscular e ficou fora da Copa, embora tenha treinado no dia seguinte e viajado para a Alemanha na esperança de recuperação. O substituto e capitão Piazza terminou trocado por um Carpegiani improvisado como volante marcador, algo completamente distinto das suas características.

Aquela parece ter sido a Seleção com mais cara de Zagallo de todas, retrancada e tendo um já decadente Jairzinho no ataque ao lado de Mirandinha e Dirceu – o maior clone do Velho Lobo de que se tem notícia e um pouco melhor do que o original. No banco, assistindo ao desastre, o trio palmeirense Ademir da Guia, Leivinha e César, no auge da Academia alviverde mas legítimos representantes do futebol alegre e objetivo que parecia incomodar o treinador. Marcamos seis gols em sete jogos, três deles contra o inocente Zaire.

O país sofria pela TV, embalado pelo samba modorrento Camisa Dez, (música de Hélio Matheus-Luís Vagner que se tornou grande sucesso com o sambista Luiz Américo). Detalhe intrigante, a canção só entrou no álbum do artista – criticando Zagallo – “aos 45 minutos do segundo tempo”, porque outra música havia sido censurada pela ditadura.

A Holanda enfiou 2×0 na semifinal sem tomar conhecimento da Amarelinha, acabou com nossa brincadeira de mau gosto e fechou a famosa boca boquirrota. Restou disputar o terceiro lugar com a Polônia e perder o jogo por 1×0, com direito a tabefes entre Leão e Marinho Chagas. A programada final com a Alemanha ainda aguardaria longos 28 anos até a Copa 2002, que nos fez pentacampeões de alma lavada com aquele show particular de Ronaldo Fenômeno na final.

Quando a Copa acabou, a revista France Football publicou foto da Seleção Brasileira de página inteira com a legenda “A decepção do ano no mundo do futebol”. Alguns anos depois, em tom de crítica, Jairzinho foi taxativo para traduzir a confusão do esquema de jogo do “professor”: “Ninguém sabia quem ia jogar, saía um, entrava outro”.

A derrota na campanha da Alemanha trouxe o alívio generalizado da demissão de Zagallo. Distante da Seleção por 17 anos (1974 a 1991), perambulou como treinador em clubes cariocas, times e seleções do Oriente Médio (Kuwait, Emirados Árabes e Arábia Saudita), sendo seus únicos feitos a conquista da Taça Guanabara 1984 (1º turno estadual) com o Flamengo, da Copa da Ásia 1984 com os sauditas e a classificação dos Emirados à Copa do Mundo 1990. Só foi resgatado pela CBF em 1991, com Ricardo Teixeira (genro do amigo João Havelange e presidente da CBF à época), após o fiasco de Lazaroni – sim, pesadelos podem ser reais – na Itália. Assumiu o posto de coordenador técnico do técnico (seu amigo e discípulo) Carlos Alberto Parreira, preparador físico em 1970.

Juntos cambalearam nas Eliminatórias para a Copa 1994 cercados dos problemas costumeiros. Careca pediu para deixar o time alegando que faltava “espírito de Seleção” ao elenco. Choviam críticas pela insistência dele e Parreira em ignorar o desafeto Romário por pura birra – terminaram tendo de engolir o Baixinho, que marcou os dois gols salvadores contra o Uruguai e foi o maior destaque do time nos EUA. “Eu estava em Angra, falei: ‘O jogo contra o Uruguai não é mais um amistoso’. Eu vim matutando e falei: ‘É a vez do Romário’. Cheguei em casa, e liguei para Zagallo: ‘Estou trazendo o Romário’”, revelou Parreira, o técnico do tetracampeonato, no programa Bem Amigos.

O outro lado da história é um pouco diferente. “Fui porque o Ricardo Teixeira deu ordem direta para me convocar. Segundo, foi a pressão popular, não tinha como. E terceiro, se o Brasil perde para o Uruguai, não indo diretamente para a Copa, a pica ia entrar neles, no Parreira e no Zagallo”, disse Romário em um podcast. E completou: “Se o Brasil não chega naquela situação, eu não ia para a Copa. Se chega classificado, que se foda o Romário. Os caras querem fazer graça. Não digo ruim, mas longe dos melhores (treinadores)”.

O contexto era claro: a campanha das Eliminatórias tinha sido péssima, a Seleção estava numa situação bastante delicada na tabela e havia a lembrança do Maracanazo de 1950. Perder novamente para o Uruguai no mesmo Maracanã e ficar fora de uma Copa pela primeira vez na história era muito pior do que baixar a crista diante de Romário. E o Baixinho não deixou por menos: arrebentou no jogo, meteu os dois gols na Celeste, ainda mandou uma no travessão, sofreu pênalti não marcado e carimbou o passaporte duplo para o Mundial – o dele e o da Amarelinha.

O Brasil ganhou a Copa nos pênaltis, numa final melancólica contra a Itália que deu início à famigerada era Dunga. Na verdade, as únicas coisas dignas de lembrança daquela campanha nos EUA são risíveis. Zinho jogando como ponta-esquerda recuado ganhando a alcunha de “Enceradeira”, de tanto prender a bola e ficar rodando o tempo todo no mesmo local. O meme de Galvão Bueno (com a garganta espremida) agarrado a Pelé gritando “É tetra! É tetra! É tetra!…”. Sim, levantamos a taça com enorme sofrimento e nem mesmo os pachecos mais bobinhos têm saudade daquilo. Campeões, Parreira saiu por cima e Zagallo glorificado como tetracampeão e efetivado mais uma vez como técnico. Dá para falar de competência naquela campanha? Sorte de novo?

Ele também comandou a Seleção Olímpica em 1996, na mesma Atlanta (EUA). Foi muito criticado quando caímos na prorrogação da semifinal para a Nigéria (4×3), com o famoso Golden Gol de Kanu. Mais uma vez, tinha ignorado Romário. Por pura birra.

Com uma nova safra excelente de jogadores – tínhamos Ronaldo, Rivaldo, Edmundo no auge, Roberto Carlos e outros craques –, muita gente acreditava que o penta seria consequência natural na Copa da França em 1998. Afinal, no ano anterior ganhamos Copa América e Copa das Confederações.

Na primeira conquista, Zagallo fez um desabafo rancoroso logo após o título – “Vocês vão ter que me engolir” – dirigido a alguns jornalistas da imprensa paulista que o criticavam acidamente e o chamavam pejorativamente de “Gagalo” e insistiam que ele estava superado.

Na segunda, repetiu vingativo o “aviãozinho” do técnico dos anfitriões sul-africanos quando o Brasil virou o jogo – o adversário havia feito o gesto quando abriram o placar do jogo. Deve ter sido um ato falho de reconhecimento do Velho Lobo, pois Romário também fazia aviãozinho quando balançava as redes.

Nos gramados franceses reapareceram velhos equívocos que comprometeram nossa campanha. A convocação do folclórico e fraco lateral direito Zé Carlos que, substituindo Cafu contundido, quase entregou o ouro contra a Holanda na semifinal. O inexplicado corte de Romário “por contusão”, atitude revanchista que gerou ódio nos torcedores e no próprio Baixinho, que antes do fim da Copa já estava jogando normalmente pelo Flamengo. Na verdade, era um ranço porque ele disse que gostaria de “dar um tempo” da Seleção depois das chateações que passou nas Eliminatórias e na Copa 1994. De bate-pronto Zagallo atacou, dizendo que aquilo era “falta de amor à Amarelinha”.

Romário cortado, Emerson ocupou a vaga porque havia o temor de que Dunga e César Sampaio não tivessem condições físicas de jogar o Mundial inteiro, teoria que não serviu para manter um jogador decisivo. Não é piada! “A minha relação com eles, principalmente com o Zagallo, era tão ruim que, dois anos depois do tetra, não tinha como ele não me levar para as Olimpíadas. Ele não levou. O Zagallo me tirou uma Olimpíada e uma Copa. Eu poderia estar lá”, afirmou Romário.

A inusitada escalação de Ronaldo Fenômeno na decisão, quando ele estava claramente fora de condições físicas e psicológicas, gerou especulações de que a comissão técnica sucumbira a pressões da CBF e de patrocinadores – até hoje aguarda-se a promessa feita por Edmundo, de contar tudo quando se aposentasse. A França meteu 3×0 na final, não tomou conhecimento da Amarelinha e o Brasil caiu novamente. Incompetência ou falta de sorte?

Demitido mais uma vez, Zagallo retornou ao comando da Seleção com a saída de Felipão. E novamente trabalhou com o inseparável Parreira. A dupla pegou a excelente base consolidada a partir do pentacampeonato conquistado em 2002 e não foi difícil vencer a Copa América 2004 e a Copa das Confederações 2005.

A proximidade da Copa 2006 trouxe de volta o clima de preocupação e a coisa começou a desandar já na pequena Weggis, Suíça, durante a preparação. Jogadores acima do peso, veteranos enfadados e descompromissados, soberba em alta, festas intermináveis e treinos com público virando farras deram a dimensão exata da bagunça que se instalou em um momento tão importante, véspera do Mundial. E Zagallo, que mesmo em seus piores momentos contava com a parceria fundamental da Rede Globo e compartilhava ufanismo com o indefectível Galvão Bueno, foi um dos principais responsáveis pelo vexame. O resultado se viu durante a competição na Alemanha, com a eliminação nas quartas. Com toda a comissão técnica demitida, teve fim de uma vez por todas o ciclo do Velho Lobo na Seleção. O azar atribuído ao 13 finalmente dera as caras ou a sorte havia cansado de vez?

Talvez por não empolgar nenhuma das torcidas dos clubes por onde passou e não merecer qualquer reverência especial delas, terminou ganhando da mídia, principalmente a carioca, uma espécie de consolo: a alcunha de “símbolo da Amarelinha” – como se a real imagem mundial da Amarelinha não fosse um certo Pelé vestindo a número 10. “Morreu Zagallo. Ótimo jogador e técnico de um trabalho só (1970). Tratam-no como único tetracampeão mundial com objetivo só: diminuir Pelé. O exercício favorito do brasileiro é apequenar o único brasileiro reconhecido mundialmente. Merecemos mesmo sermos um povo de merda”, afirmou o jornalista Fábio Sormani em suas redes sociais. Sim, é mesmo o fim da picada tentar igualar Zagallo a Pelé em qualquer coisa. Sempre vai soar incompreensível e inadequado. É como se não existisse o Macallan e o resto dos uísques. E fingir que Garrincha foi apenas um anjo de pernas tortas.

Dentro dessa lógica de único tetracampeão usada pela mídia brasileira para Zagallo, seria justo igualar João Havelange a Pelé como tricampeão. Afinal, o homem foi presidente da CBD de 1958 a 1974. Também seria título correto para o massagista Mário Américo (1950 a 1974). Seu sucessor e bicampeão Nocaute Jack (1970 a 1994) seria promovido a tri porque era administrador da Granja Comary na época do penta. E Parreira seria promovido a bicampeão, pelo trabalho como preparador físico em 1970. O mesmo critério do tetra zagalliano deveria valer para todos os empregados da CBD/CBF. Havelange poderia ir mais além, reivindicar um heptacampeonato pela FIFA, já que presidiu a instituição de 1974 a 1998. Como todas as seleções são suas filiadas, claro que foi campeão junto com elas, até porque esteve na tribuna de honra em todas as finais. E poderia somar com o tri na CBD para ostentar um decacampeonato em 11 Copas. Parece piada e é mesmo!

Nas homenagens póstumas da mídia, um texto lacrimoso teve a desonestidade de afirmar que ele havia montado o fabuloso time da Copa 1970, como se João Saldanha sequer tenha existido. O bajulatório que virou vexatório! Convenhamos, tentar igualar a função de coordenador técnico a quem comanda ou joga só para dar um título de tal envergadura a alguém… Imaginemos, pois, o Flávio “Murtosa” Teixeira sair por aí se vangloriando que é campeão mundial porque foi coordenador técnico de Felipão na campanha de 2002 – o próprio Felipão jamais arriscou capitalizar o merecido título de forma vexatória. Não basta o constrangimento de ver os coleguinhas da imprensa trocando o nome de Zinho por “Tetra”?

Ao invés de tentar atribuir feitos superlativos inexistentes ao Velho Lobo, seria muito mais justo reconhecer seu inegável valor evitando os exageros santificadores que cercam os funerais. Não há como negar sua marca impressionante de ter estado em sete Copas do Mundo. Mas esse número também foi alcançado pelos massagistas Mário Américo e Nocaute Jack, além do atual chefe de cozinha Jaime Maciel, algo sequer citado. Sem contar as 11 de Havelange.

Também é impossível negar que tivemos Canhoteiro, Pepe, Edu, Joãozinho, Éder, Júlio César como verdadeiros craques da ponta-esquerda. Naquele papel recuado, o tal terceiro homem, Dirceu e Zinho são exemplos bem-acabados do tamanho do futebol de Zagallo em campo – incluir nessa lista recuada Rivellino, Paulo Cézar Caju, Mário Sérgio e Rivaldo vira covardia.

Muitos o consideravam grosseiro e ranzinza. Em 2003, ao voltar à CBF como coordenador da Seleção, não perdeu a oportunidade de ser Zagallo: “Disse para minha mulher que tinha me despedido como treinador, não como coordenador. Ela teve que me engolir”. Em 2005, disparou contra Ronaldo Fenômeno: “A cabeça dele deve estar boa à beça. Cheia de euros”. Rancor ou inveja?

A frase famosa “Vocês vão ter que me engolir” talvez traduza a enorme dificuldade para encarar críticas e o espírito arrivista. “Estavam fazendo uma onda muito grande para colocar o Luxemburgo no meu lugar, e partiu do Juca Kfouri e do Juarez Soares, e eu não podia falar nada, tinha que esperar acontecer, e aconteceu: o título veio, e aí eu dei uma explosão. Foi uma resposta indireta para eles”, afirmou em entrevista.

Inúmeras vezes foi chamado de “burro” e “ultrapassado” por cronistas e torcedores. O costume de aparecer na mídia reclamando ou esbravejando, seu ufanismo exagerado e sua teimosia fizeram que não houvesse nem idolatria nem unanimidade em torno do seu nome. A midiática superstição em torno de 13 letras às vezes soou como jogada de marketing meio ridícula. Passou anos avisando que era Zagallo e não Zagalo, até que a imprensa adotou a grafia desejada. Terminou se equilibrando no “ame-o ou deixe-o” do bordão ufanista criado pelos militares. Só falta alguém aparecer mostrando que “Tetra das Copas” tem 13 letras.

Zagallo nunca foi gênio ou lenda do futebol como agora se tenta fazer crer. Basta olhar para a realidade, ninguém mais fala de Maradona ou Cruyff, gênios e lendas do futebol.

Talvez seja mais correto reconhecer que o Velho Lobo teve a longevidade profissional a seu favor e aproveitou as oportunidades, inclusive políticas e corporativistas, como qualquer mortal. Também nunca foi a figura tão deletéria que muitos desejam desenhar, mesmo com a pecha de adesista da ditadura e pelas atitudes moralistas sempre preterindo jogadores de personalidade mais independente, convicções fortes ou dados à uma boa farra – Afonsinho, Marinho Chagas, Paulo Cézar Caju, Renato Gaúcho e Romário são os casos mais famosos.

A trilha sonora (links abaixo) nos leva a dois pontos distintos sobre ele, o triunfo de 1970 e o fiasco de 1974. Ao fim e ao cabo, depois de 92 anos de muita história, Zagallo morreu (13 letras) carioca no Rio de Janeiro em 5 de janeiro de 2024. Deixa uma história importante que não precisa de enfeites e bajuladores. Ela é grande por si só, com os altos e baixos humanos. Com sorte e azar.

A Amarelinha que tentaram lhe atribuir exclusividade agora está sob nova direção: Dorival Júnior, 13 letras. Competência e sorte? O tempo é senhor de tudo.

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