Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

O cheiro do mato

O2 Play/Divulgação

O cheiro do mato

  • Heraldo Palmeira

GIRAMUNDO VIU Elis Regina e Tom Jobim dispensam apresentações. Elis & Tom é um dos discos definitivos da música brasileira, gravado em 1974 em Los Angeles (EUA). Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você é o documentário de Roberto de Oliveira – empresário de Elis à época – com as sessões de ensaio e gravação do álbum.

Rodado originalmente em 16mm, permanecia inédito nestes 49 anos. Teve as imagens restauradas em 4K, o som remasterizado com uso de IA e acaba de chegar aos cinemas. O filme estreou em 137 salas de 53 cidades brasileiras e em sua terceira semana de exibição já foi visto por mais de 40 mil pessoas.

Naquela época, era algo costumeiro a gravadora oferecer um presente especial quando um artista completava 10 anos de contrato. André Midani, então presidente da Philips, perguntou o que Elis queria de presente e ficou paralisado com a resposta: “Gravar um disco de músicas de Tom Jobim… com Tom Jobim”. E a companhia entrou em campo para “embrulhar o pacote”.

Aos 47 anos, Tom já era um monumento internacional. Aos 29, Elis transitava sozinha no posto de maior cantora brasileira, mas ainda buscava consolidar prestígio à carreira em razão de alguns equívocos cometidos antes.

Com a frase lapidar “No Brasil, sucesso é ofensa pessoal”, Tom deixou claro o quanto andava chateado com a pouca relevância que o Brasil lhe dava. Estava morando em Los Angeles e, por isso, o projeto foi levado para lá. Ele hospedou em casa Elis e o marido, o maestro César Camargo Mariano.

O MGM Studios estava em recesso e não foi difícil abrir suas portas para receber um processo criativo que misturou música, personalidades fortes, tensões, desconfianças, soberba, enfrentamentos, deselegância, humilhações, imposições… a ponto de as gravações quase serem interrompidas e o projeto ser esquecido. O mais impressionante é que, com o passar dos dias, esse vendaval construiu uma inacreditável e crescente sinergia entre Elis e Tom.

Por incrível que pareça, foi Tom quem se mostrou inseguro no início dos trabalhos. Afinal, estava acostumado a ser o centro das atenções e até chegou a perder a linha, distribuindo deselegâncias no trato com Mariano e insistindo em chamar Elis ironicamente de Élis (com tônica no “E”). Só que, do outro lado, estava alguém firme e acostumada à posição central, ainda mais num projeto da carreira dela – Tom seria “apenas” o convidado especial.

Nenhum dos dois era exatamente figura fácil e não foi tarefa simples harmonizar o minimalismo genial dele com a exuberância vocal dela, muito menos seus temperamentos. Tanto que as gravações por muito pouco não foram interrompidas e o projeto abandonado, em que pese a produção estar sob o comando de Aloysio de Oliveira, da confiança de ambos e que realizou com maestria o papel de “algodão entre cristais”.

Diversos depoimentos dão ideia do que aconteceu. “Ele quase se transformou no maior disco não feito da História”, nas palavras do produtor musical João Marcelo Bôscoli, filho da cantora. “Elis não gostava do Tom”, assegura Midani. “Eu tenho certeza que a Elis não era das cantoras favoritas do Tom”, rebate o produtor musical Nelson Motta. “A ideia dele é que o disco seria um disco dele”, argumenta a filha Beth Jobim. “Mas o disco era dela”, lembra Mariano. “Eles deixaram algo lindo para muitas gerações”, resume o engenheiro de gravação e mixagem Humberto Gatica. “Elis & Tom é dolorosamente lindo, o documentário sobre um país que mal se anunciava e logo sumiu”, sacramenta o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos.

O fato de o documentário ter sido realizado ressalta o quanto somos desleixados com nossa memória, pois pouco há de registro similar de outras obras e momentos monumentais – como aqueles – da nossa cultura popular. Se as imagens mostram os bastidores da produção de uma forma sem precedentes na música brasileira, também revelam sem qualquer filtro a tensão reinante no confinamento do estúdio e os motivos que geraram aquele clima difícil. Tudo isso é mérito de manter a câmera aberta com visão jornalística sobre a realidade. Sem temer as reações químicas daquele encontro único. Sem disfarces ridículos. Sem a ânsia do marketing e das assessorias de imagem atuais tentando criar um mundo perfeito.

Durante os trabalhos, o então diretor artístico da gravadora Philips Roberto Menescal ligou do Rio para Elis em busca de notícias. A Pimentinha não deixou barato: “Está uma merda, não tem nada bom, o Tom é um babaca, um chato, reage contra os aparelhos eletrônicos, diz que vão desafinando e afinando não sei o quê, fazendo tipo, e a gravação está babaca, parecendo bossa nova”.

Ao fim de 18 dias (entre fevereiro e março de 1974) de ensaios e gravações, o álbum resultou espetacular e salpicou pitadas jobinianas na usina sonora tocada por César Camargo Mariano (pianos acústico e elétrico), Hélio Delmiro (guitarra e violão), Oscar Castro Neves (violão), Luizão Maia (baixo), Paulinho Braga (bateria) e Chico Batera (percussão). Não bastasse, ainda contou, sob regência de Bill Hitchcock, com o auxílio luxuoso de um sexteto de cordas (músicos não creditados) e um quarteto de flautas onde apenas Hubert Laws e Jerome Richardson são citados na ficha técnica – um tipo de desleixo corriqueiro nas produções da época. E uma Elis feliz da vida disse a Menescal: “Estou louca pra chegar no Brasil e te mostrar. Todas as faixas estão lindas!”.

A obra monumental de Tom recebeu ali uma brisa fresca pela interpretação perfeita de Elis e a sonoridade da sua banda magnífica. Passados 49 anos do lançamento, segue como um dos maiores discos já produzidos na música mundial. E tudo que veio depois na obra dela mostrou que seu canto ficou definitivamente marcado por esse encontro de semideuses. O que já era perfeito ficou mais que perfeito.

É assustador esse sentimento de perda cultural contínua que fomos aprendendo a administrar ao longo dos anos. Além de não preservarmos memória nenhuma, fazemos questão de esquecer os tesouros em caixas de quase lixo escondidas em quartos de despejo, ou naqueles descartes “modernizadores e energizantes” recomendados por decoradores, arquitetos, coachs e gurus de autoajuda. Alegamos como desculpa que os meios digitais facilitam tudo, mas as play lists que infestam o ar revelam a indigência intelectual coletiva – coitados daqueles que vivem de cliques, jamais conseguirão compreender a liturgia de ouvir um disco.

Em certa ocasião, perguntado por Joaquim Ferreira dos Santos sobre a “urbaníssima bossa nova”, o próprio Tom deu uma pista – com uma de suas metáforas espetaculares – a respeito desse triste descaso: “O cheiro do mato desapareceu”. Ouvir o álbum ou ver o documentário Elis & Tom dá a exata medida desse drama, do abismo incontornável que o desmatamento intelectual desenhou como esterilidade e morte para a fertilidade criativa.

Curiosidade Como o MGM Studios estava em recesso, a empresa destacou o chileno Humberto Gatica – então assistente de estúdio – para comandar a engenharia de gravação e mixagem de Elis & Tom. Quis o destino que esse fosse o primeiro trabalho assinado por Gatica, que se tornou o mais famoso engenheiro de gravação da história, cujo portfólio registra a engenharia de som em produções de Quincy Jones, Michael Jackson – álbum Thriller –, Celine Dion e muitas outras estrelas. Além de 17 Grammys na estante.

Saiba mais

Trailer Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você   https://www.youtube.com/watch?v=gg2KqW74Cug

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