
Geralt/Gerd Altmann/Pixabay
O crime compensa?
- Heraldo Palmeira
Não é nada agradável ouvir que “o Brasil é um país de índole criminosa”. Até porque não deve ser errado acreditar que a maioria do nosso povo é gente de bem, que luta diariamente para sobreviver. Sim, é certo que esse é um trabalho hercúleo, e muitas vezes parece que o certo virou errado. E vice-versa, o que reforça o sentimento de impotência.
Por mais que seja incômoda essa visão negativa, é inegável que a repetição interminável de patifarias, a lentidão da Justiça e a impunidade, testemunhadas pela sociedade ao longo do tempo, terminou instalando uma inquietante capacidade de relativização de tudo, uma espécie de desesperança que roça a conivência. É como se reconhecêssemos que o crime compensa e não tivéssemos ânimo para, pelo menos, perguntar “até quando?”.
Tratar a corrupção endêmica no ambiente político já perdeu a graça – dizem que ela está enraizada desde o Cabral “descobridor”, entre aspas porque até nossa origem histórica é cheia de controvérsias e narrativas quanto a data, local e quem primeiro desembarcou por aqui, que poderiam ter sido os espanhóis. Os escândalos se repetem sem distinção de lados ideológicos, mas “suas excelências” seguem sendo eleitas e reeleitas por esta mesma sociedade que perdeu a capacidade de se indignar. Portanto, qualquer reclamação parece mais justa se começar diante do espelho.
As manchetes do dia mostram a mídia tratando com destaque de dois casos irritantemente canalhas, presentes no cotidiano há bom tempo e dos quais todo mundo já ouviu falar – e até foi vítima ou testemunhou –, suficientes para demonstrar a banalização do crime, a vulnerabilidade da sociedade e nossa capacidade de relativizar tudo.
O primeiro se escondia desde 2017 e finalmente explodiu dentro do INSS, onde associações desconhecidas, mas devidamente conveniadas com a instituição, vinham retirando dos benefícios dos aposentados e pensionistas quantias mensais não autorizadas por eles, tratando-os por “associados”. Sim, tudo processado pelo sistema oficial de pagamentos, apesar das reclamações diretas de prejudicados surgidas em todos os cantos do país. Além disso, o esquema impôs regras restritivas de restituição a quem desejasse fazer o bloqueio via sistema ou buscasse reparação na Justiça. Em muitos casos, a recomendação era procurar a associação, quase sempre instalada em outra cidade. Sem contar que ainda podiam ouvir, no ato do cancelamento, que a política (da associação) era devolver apenas dois meses.
O golpe foi milimetricamente planejado pela quadrilha, com o requinte de os descontos terem início nos meses de fevereiro, para acompanhar o cronograma de reajuste anual concedido pelo governo aos benefícios. Por óbvio, a cada fevereiro, quem já fora “associado” em anos anteriores tinha o valor do desconto “atualizado”. A lógica era simples: com o aumento (do benefício), o desconto fraudulento era mais facilmente disfarçado pelo novo valor (maior) do benefício e pela falta de acompanhamento da grande maioria dos aposentados e pensionistas, que não costumam verificar o comprovante mensal.
Os investigadores ouviram mais de mil aposentados e pensionistas, escolhidos aleatoriamente, e 97% dessas pessoas afirmaram que nunca autorizaram qualquer desconto em seus benefícios. Não surpreende que uma dessas associações tenha pulado de três para 600 mil “associados” em dois anos. Esses mesmos investigadores estimam que a roubalheira represente R$ 6,3 bilhões, podendo ser ainda maior. Resta saber se as punições seguirão além da demissão do presidente e de alguns servidores da autarquia, para alcançar os principais beneficiários do esquema.
Em 2023 o TCU alertou o INSS sobre a existência dessa fraude e determinou que o sistema de controle fosse mudado. Tudo solenemente ignorado. Não é de estranhar, pois o ministro da Previdência agora fez ouvidos moucos para a ordem presidencial de demitir o principal gestor de uma estatal cujo orçamento para 2025 é de R$ 1 trilhão apenas com despesas obrigatórias com os benefícios previdenciários – a demissão foi realizada diretamente pela Presidência da República.
Na bacia das almas do escândalo, o governo anunciou que todos os convênios com associações estão suspensos e que os descontos fraudulentos serão ressarcidos. É bom não esquecer que agilidade é indispensável nesse processo em razão da faixa etária dos prejudicados. A dúvida é se sobrará algum dinheiro nas tais instituições para ser devolvido a quem de direito e se o Tesouro terminará convocado a abrir os cofres – o que significa punir novamente a mesma sociedade que já foi roubada.
Seria ótimo que esse fio puxasse a meada de outro flagelo nacional: os crimes digitais contra nossos velhinhos, muitos deles ocorridos nos ambientes de agências bancárias. Boa hora para aumentar a segurança dos sistemas, a vigilância sobre os terminais de autoatendimento e endurecer a legislação contra os criminosos. E até facilitar o acesso ao extrato mensal do benefício (por meio digital) para cada aposentado e pensionista, um bom meio de controle. Algo com um passo a passo simples que não intimide essa parte da população muito mais íntima do mundo analógico.
O segundo assunto das manchetes do dia é ainda mais visível, porque ocorre e deixa marcas na via pública: o roubo de cabos de cobre instalados em galerias abaixo do solo e nas redes de postes – quem já não viu aqueles restos de cabos dependurados? No começo, os criminosos agiam na calada da noite. Diante da impunidade, perderam o pudor e resolveram não mais dispensar uma noite de sono ao perceber que podiam agir sem incômodo em plena luz do dia..
A operação policial mostrada na mídia, realizada no Rio de Janeiro e São Paulo, revelou valores bloqueados da quadrilha da ordem de R$ 200 milhões. Os criminosos, vestidos em uniformes falsos de empresas prestadoras de serviços públicos, utilizavam caminhões para arrancar cabos instalados em galerias subterrâneas – uma notável especialização do modelo operado por moleques que sobem em postes correndo riscos de morte e, quase sempre, em busca de dinheiro pequeno para bancar as próprias drogas, crack sobremaneira. O grupo era extremamente organizado, com “especialistas” atuando desde as operações logísticas até a ocultação do patrimônio obtido.
As estimativas apontam que 12 milhões de metros de cabos foram roubados entre 2018 e 2021. Talvez já não seja possível estimar a metragem roubada no país e quantas quadrilhas estão em atividade desde que esse “negócio” ganhou corpo, incrementado pela recuperação econômica pós-pandemia que provocou grande alta do preço do cobre no mercado internacional. Finalmente, o combate a esse crime começa a mirar uma peça fundamental para o esquema: receptadores. Afinal, desde que o mundo é mundo, qualquer comércio formal ou informal só existe porque tem fornecedores e compradores.
Se ainda vivêssemos no império da mídia impressa seria provável que as manchetes de hoje servissem para embrulhar peixe pelos próximos dias. A lógica é simples: amanhã haverá um novo escândalo explodindo, jogando o de hoje para a posição de penúltimo e condenando jornais de ontem a balcões de feiras e mercados. Resta torcer para os velhinhos escaparem dos golpistas e cruzar os dedos para que os semáforos não sofram apagões, nossos bairros continuem energizados e os meios de comunicação que usamos para fazer quase tudo não saiam do ar por falta de sinal de internet.
É assustador viver com a sensação de que uma quantidade imensa de crimes continua em curso sugando montanhas de dinheiro alheio e com boa chance de impunidade. Sem contar o escárnio dos criminosos vivendo na ostentação pura e simples – mansões, carrões, barcos, joias, roupas de grife, viagens luxuosas… Nunca foi tão atual o velho chavão policial “siga o dinheiro”.
Diante de um quadro tão desolador, vamos rezar para que os agentes da lei não percam o ânimo. Afinal, também adquirimos intimidade com a expressão “enxugar gelo” no pino do Sol, que faz parte do dia a dia deles. Hora de fazer a dança da chuva.