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O crooner
- Heraldo Palmeira
Numa tarde de sábado de 2016 duas amigas do Giramundo estavam passeando em Nova York e, depois de uma cerimônia religiosa na igreja de São Ignácio de Loyola, na Park Avenue, foram jantar a alguns quarteirões no Coppola’s East, um dos incontáveis restaurantes italianos da Big Apple.
O lugar abriu as portas em 1998 na 3rd Ave, área de Gramercy Park em Manhattan. É o segundo restaurante do chef Salvatore Coppola na cidade, mantendo o mix de refinadas receitas tradicionais da Itália, pitadas pessoais das suas raízes do norte do país e respeitável carta de vinhos.
Já no início da noite a quantidade de pessoas indicava a qualidade da comida. Os dois ambientes estavam cheios e as mesas ficavam muito próximas para acomodar a clientela. As duas tinham reserva na parte mais íntima da casa.
De repente, um senhor elegantíssimo entrou acompanhado pela esposa, serpenteando entre as mesas em busca da sua própria mesa. O caminho entalou exatamente nas duas turistas e soou uma voz gentil e suave pedindo licença para passar. Uma delas levantou e afastou a cadeira, recebendo um “thank you” emoldurado por um sorriso. Algo lhe pareceu familiar. Quando se acomodou novamente, deu de cara com a amiga maravilhada.
– Você não reconheceu?!
– Não! – respondeu sem convicção porque algo foi bastante familiar naqueles instantes frente a frente com o homem.
– Era o Tony Beeennett! E você não pediu um autógrafo nem fez uma foto com ele!
Até hoje a turista vitimada pelo inesperado tem dúvida se ficou envergonhada por não reconhecer de pronto um dos maiores cantores populares de todos os tempos ou porque não pediu autógrafo e foto ao seu lado. É compreensível, alguém como Tony Bennett sempre esteve associado ao glamour de um grande espetáculo, nunca a algo tão trivial. Uma daquelas cenas típicas “parece alguém que eu conheço”.
Filho de imigrantes italianos calabreses, Anthony Dominick Benedetto era um nova-iorquino autêntico que se tornou um dos maiores personagens da cidade. Sim, podia ser encontrado em muitos lugares, assim sem pompa ou estrelismo mesmo incorporado em seu personagem famoso Tony Bennett, uma perfeita encarnação do sonho americano e um artista de fama mundial queridíssimo por todos.
Lutou na fase final da Segunda Guerra Mundial (a partir de 1944, aos 18 anos) e participar da libertação de um campo de concentração nazista nas redondezas de Landsberg, na Baviera. “Depois de ver esses horrores com meus olhos, me irrita que algumas pessoas insistem que não houve campos de concentração”, costumava repetir traduzindo sua indignação diante dos horrores que testemunhou.
Ao fim do conflito integrou uma banda das forças armadas e iniciou a carreira artística em 1949. Já em 1951 chegou ao 1º lugar das paradas com Because of You, que vendeu mais de 1 milhão de cópias. Partiu do território das big bands, flertou com o jazz, mas seguiu em busca de um estilo particular dentro do ambiente dos showmen. Com livre trânsito no cancioneiro norte-americano, sua lista de sucessos é um verdadeiro memorial de versões definitivas de músicas que embalaram gerações.
Bennett esteve no Brasil diversas vezes, inclusive quando a bossa nova estava entrando na onda do sucesso e ele entendeu que aquele balanço iria aportar em muitas praias. Desde então dizia-se fã da cantora brasileira Leny Andrade, uma diva do jazz mundialmente respeitada embora pouco conhecida aqui, e que nos deixou neste 24 de julho.
Em 1962 sua voz impecável deu a volta ao mundo embalada pela mídia no megassucesso I Left my Heart in San Francisco (link abaixo), talvez a sua mais definitiva interpretação. Além da elegância, sua carreira foi pautada pela decisão de manter o estilo inconfundível e a generosidade de sempre abrir os braços para artistas novos – o maior exemplo pode ter sido a profícua parceria com Lady Gaga. Assim, manteve-se atemporal em duetos com Paul McCartney, Aretha Franklin, Amy Winehouse e dezenas de grandes nomes. Também gravou com nomes latinos como Gloria Estefan, Thalía, Maria Gadú e Ana Carolina.
Definitivamente, não é para qualquer um ser definido por Frank Sinatra como “o melhor cantor do mundo”. Já o jornalista Celso Masson, que o entrevistou para a revista Veja durante uma turnê brasileira, dá uma pista do perfil de Bennett: “Ele também gostava de pintar e sempre trazia telas e pincéis para a suíte em que se hospedava no Copa. Fez alguns óleos da vista da orla carioca”.
Até o fim, a voz permaneceu irretocável na arte de encantar grandes plateias. Desde aquele 2016 em que esbarrou nas duas turistas brasileiras, o Alzheimer veio cumprindo sua devastação. Embora tenha continuado em atividade por mais cinco anos, a doença já impedia Bennett até de reconhecer pessoas. Mas, refletindo o respeito que sempre dedicou ao seu ofício ao longo de uma carreira de sete décadas, nunca esqueceu qualquer das letras das músicas que lhe acompanharam até o último show, realizado em agosto de 2021 ao lado da amiga Lady Gaga num palco nova-iorquino por excelência: o Radio City Music Hall.
Estava completada uma carreira rara em que ele soube contornar a aparente decadência e ressurgir nos anos 1990, com a ajuda do filho Danny Bennett, que passou a administrar sua obra. Foram 36 indicações ao Grammy, com 18 conquistados. Também recebeu dois Emmy.
A vida lendária de 96 anos vai continuar tocando em alta-fidelidade por qualquer mecanismo de reprodução sonora existente ou que venha a existir, como reza nos contratos da indústria fonográfica. Afinal, é uma justa reverência do mundo a uma de suas maiores vozes, que, muito além de San Francisco, se deixou viver nos corações de quem gosta de música.
Ouça aqui
I Left my Heart in San Francisco https://www.youtube.com/watch?v=r6DUwMnDxEs