Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

HAYTON ROCHA O outono da vida

Sabine Vanerp/Pixabay

O outono da vida

  • Hayton Rocha

Um dos maiores escritores do século passado, Gabriel García Márquez, o Gabo (1927–2014), teve sérios problemas de saúde no outono da vida. Primeiro, enfrentou um câncer linfático. Depois, a demência que lhe roubou dois de seus bens mais preciosos: a memória e a capacidade de contar histórias.

Deu tempo, no entanto, de nos legar em seu livro Cem Anos de Solidão uma das expressões mais incensadas da literatura mundial: “O segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão”.

No primeiro domingo deste mês, passava das 10 da noite quando ela me telefonou e, num fiapo de voz, gemendo, praticamente negava a honradez do pacto a que Gabo se referiu: “Meu filho, me acuda… Acho que vou morrer. Vomitei muito, tô tonta, as pernas fracas…”.

Logo ela, saudável e vaidosa, que não vai nem à portaria do prédio ou ao mercadinho da esquina sem antes retocar o batom e ajeitar os cabelos no espelho do elevador. Logo ela, que adora boleros e pagodes e não abre mão, pelo menos, de dois bailinhos por mês.

Nos 15 minutos em que troquei de roupas e corri até o apartamento dela, pensei no que leva uma matriarca com 85 outubros, viúva por quatro vezes, mãe de 10 filhos, avó de mais de 20 netos e bisavó de quase 25 bisnetos a pôr em xeque o segredo da velhice agradável de que Gabo falava.

A porta estava entreaberta. Recostada no sofá da sala, rosto pálido, olhos fundos, lábios ressequidos, quis especular sobre o que estava acontecendo: “Quase desmaio sentada no vaso… Acho que minha pressão subiu…”.

De cara, pensei em carência de afetos, desatenção de filhos e netos que chuparam a taboca de roletes de cana e agora desprezam o bagaço. Mas não quis chateá-la com metáforas nada doces.

Faz tempo que ela não quer mais dividir sua intimidade com ninguém. Mora só, cuida do próprio alimento, assiste TV, reza e circula nas redes sociais. “Amor pra valer eu só vivi o primeiro, com o pai de meus filhos. Se dependesse de mim, era ele quem eu queria para envelhecer do meu lado”.

Nunca foi de ler nem de escrever, um dos grandes regalos da solidão. E já não faz caminhadas à beira-mar, ao entardecer, como até bem pouco tempo. “Não dá mais! Eu caminhava com uma tabica pra espantar maloqueiros, mas morria de medo deles!” – contou outro dia.

Reclama que não se alimenta bem porque não sente mais prazer em nada que prepara para si mesma. “Quem gosta são os porteiros, com almoço e janta de graça” – pontua vez por outra. Cansa com facilidade, a esta altura, mas não aceita ajuda (exceto da faxineira, uma vez por semana), desde cozinhar, lavar panelas e pratos, até limpar banheiro.

Parece que foi ontem. Aos sábados, nos anos 1980, os filhos (com noras e genros) se juntavam na casa da matriarca para beber e comer, chorar derrotas e cantar vitórias, e ouvir de novo o seu grito chamando à mesa posta com um panelão de guisado, mesmo depois de casados e dos primeiros filhotes de uma nova geração.

Quando da morte de um de seus filhos, em 1991, vítima da ruptura de um aneurisma cerebral, pensou-se que ela tombaria junto. Claro, difícil entender como uma mãe suporta enterrar um pedaço de si sem enlouquecer de dor.

Deve ter aprendido ali que a morte não chega com a velhice. O que chega é a chatice de ver que, em silêncio, o fim se aproxima. De que é preciso segurar a ansiedade e viver semana a semana, sem fazer planos para o mês que vem ou para o próximo Natal.

No primeiro domingo deste mês, ela acusou o golpe, claramente chocada com a notícia de que outro de seus filhos (após meio século de cigarros e uma cirurgia de laringe) aguardava o resultado de uma biópsia. E lá fomos nós pelas ruas desertas, a caminho do hospital.

Apesar da letargia da recepção e da triagem, foi rápido o atendimento: “A pressão tá dentro do esperado, mas ela tá muito desidratada. Vou fazer soro e pedir alguns exames de sangue, urina, tomografia” – disse a plantonista.

Às 4:30 da madrugada de segunda-feira, de posse do resultado dos exames, a doutora concluiu: “Tá com anemia moderada. Já foi hidratada, precisa agora tomar esses medicamentos (um protetor estomacal e um remédio para náusea) e procurar especialistas para tratar da anemia e da tontura”.

Na terça-feira, procurei saber dela, depois da notícia de que o quadro de seu filho não é tão grave quanto parecia de início. “Tá melhor… Já brincou até de esconde-esconde com os bisnetos” – disse uma de suas netas.

Longe de mim questionar a construção literária de Gabo, mas o segredo de uma velhice agradável não pode ser apenas a assinatura de um pacto com a solidão. Parte dele é saber como regar a conta-gotas o jardim de contatos (inclusive virtuais) com quem sente prazer de nos contar novidades e de ouvir o que ainda temos a dizer.

E que não morram antes de nós quem amamos. Impossível? O que seria do querer se não pudermos sonhar fora da bolha? Desejar apenas o possível é optar pela mediocridade. Tanto mais no outono da vida.

*HAYTON ROCHA, escritor e blogueiro

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*O outono da vida é a história que deu origem ao livro Uma Estrada e a Lua Branca, (o 5º do autor), em fase de lançamento, leitura que o Giramundo recomenda.

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