Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

O que vem a seguir?

Kellepics/Stefan Keller/Pixabay

O que vem a seguir?

  • Heraldo Palmeira

O mundo está passando por uma das maiores rupturas da História, traduzida pela mudança radical na forma de vida e no comportamento da humanidade, e cujo grande vetor é a tecnologia. Como se não bastasse, tudo ocorre num ambiente recheado por desafios enormes: mudanças climáticas, desequilíbrio econômico, desigualdades em diversos níveis, novas doenças, guerras, desinformação, polarização ideológica, radicalismo…

Enquanto mais da metade da população mundial vive com menos de US$ 7 (R$ 39,06) por dia, 56 conflitos militares estão em andamento no mundo – segundo dados do Índice Global da Paz (IGP), divulgado anualmente pelo Institute for Economics and Peace. Tamanha beligerância internacional cria uma espécie de guerra mundial não declarada, em que 92 países empreendem campanhas fora de suas fronteiras. Até parece que a canção Alô, Alô, Marciano (Rita Lee-Roberto de Carvalho) foi composta para ser atemporal: “Alô, alô, marciano, aqui quem fala é da Terra. Pra variar, estamos em guerra. Você não imagina a loucura, o ser humano tá na maior fissura”.

Construímos com as próprias mãos, por atos e omissões, este intricado sistema de disputas econômicas, culturais e polarização irracional, ignorando desigualdades que há muito saltam aos olhos e fingimos não ver. O resultado não poderia ser outro: estamos sufocados pela desesperança e mazelas de uma vida moderna que nos reduz a números.

Como se não bastasse, subiu ao palco com status de estrela a Inteligência Artificial (IA), ainda novidade insondável para a maioria dos mortais, mas já utilizada num volume e abrangência inéditos e sem volta. O poderio pleno da ferramenta segue restrito a poucos – criadores e operadores corporativos –, cabendo aos usuários comuns apenas algumas perfumarias encantadoras oferecidas pelo ChatGPT e outros aplicativos menos famosos.

A Netflix acabou de lançar um documentário interessante para ajudar na compreensão deste momento. What’s Next? (O que vem a seguir?) está disponível com um título em português que beira o ridículo: O Futuro de Bill Gates. Mesmo servindo de elo narrativo, Gates mantém uma postura elegante sem qualquer afetação. Ao longo dos cinco capítulos, uma série de depoimentos de figuras proeminentes da ciência, tecnologia, academia, jornalismo, saúde, política, entretenimento e comunicação expõem suas visões a respeito do mundo digital e preocupações com tudo que está posto ou por vir. “Acho que chegaremos a um ponto onde colocaremos nossa fé cada vez mais nas máquinas, e sem a presença humana, o que pode ser problemático”, alerta o diretor de cinema James Cameron, um visionário tecnológico e criativo que acaba de se associar à Stability IA, empresa que pretende atuar na transformação da mídia visual para o próximo século.

As questões vão se sucedendo de forma surpreendente no documentário. De cara, o primeiro episódio pergunta “O que a IA pode fazer por nós e conosco?”. Daí em diante, uma avalanche de inquietações vai contaminando o telespectador e nenhum tema parece censurado. Tanto que as teorias da conspiração envolvendo Gates estão todas lá – baboseiras como chips em vacinas e batatas, que deveriam causar constrangimento até na mais estúpida das criaturas. O problema é que as pessoas que acreditam e disseminam essas narrativas não estão mais neste plano, embarcaram numa viagem sem volta à loucura.

A sensação de falta de controle desse ambiente tecnológico está soando em voz alta, revelando a preocupação relacionada com a inexistência de qualquer regulamentação capaz de proteger a sociedade de efeitos que podem mudar rapidamente de patamar, de indesejados para extremamente perigosos. Isso já se materializa em notícias cada vez mais comuns de que determinada IA modificou seu próprio código para buscar maior eficiência ou pelo repertório de utilizações criminosas que se anuncia assustador.

A porteira foi aberta pela Seção 230, uma lei americana de 1996 que blindou as plataformas de responsabilidades sobre os conteúdos veiculados. A ideia era incentivar o crescimento das empresas de tecnologia que dominam esse mercado e eximir o governo de definir, regular e controlar o setor. “O ‘resolveremos depois’ se tornou um modelo de negócios […] Uma lei chamada de Seção 230 terminou por decidir que, em vez de responsabilizar plataformas pelo conteúdo que passava por elas, elas seriam, na verdade, isentas de responsabilidade”, resume Sarah Roberts, professora do Departamento de Estudos de Informação da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA).

É certo que, à época, as empresas de tecnologia eram apenas uma espécie de veículos neutros de tráfego de informação, como estava previsto na Seção 230. “E agora esta lei protege as mais ricas e poderosas empresas na história do mundo. Acho que o que não previram foi que era um bom meio para pessoas mal-intencionadas se esconderem. A televisão e até a transmissão em si têm limites. Jornais e tudo o que for físico têm limites, mas aí surge essa coisa que é viciante, divertida e cheia de loucuras. É tão bonita, tão brilhante, tão interessante, e sua vida é chata. Faz você prestar atenção, sabe? E se lhe mantiver lá, você começa a ver coisas que lhe arrastam para um buraco sem fundo, e você nunca mais volta”, afirma Kara Swisher, jornalista especializada em tecnologia. “Não podemos esperar que se autorregulem. Temos que reestruturar todo o aparato em que essas empresas de tecnologia operam para garantir que as pessoas serão protegidas, especialmente os mais vulneráveis na sociedade”, complementa Ramesh Srinivasan, professor do Departamento de Estudos de Informação da UCLA. “Não estamos percebendo que esta tecnologia pode nos distrair de uma forma que a gente pode nunca mais ter foco”, alarma-se o ator Antonio Fagundes.

A internet virou um espaço de autoexpressão e criou a fantasia de que somos autossuficientes para descobrir todas as coisas que estão acontecendo. Pior, gerou um território livre de critérios que permite a qualquer um disseminar qualquer estupidez como verdade. Algo que o escritor italiano Umberto Eco descortinou sem piedade: “As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel”.

Também estão vagando por aí imbecis que se disfarçam para “cometer” textos e, sedentos de relevância, atribuem suas baboseiras a figuras respeitáveis. Nem o gigante literário russo Fiódor Dostoiévski foi poupado: “A tolerância chegará a tal ponto que as pessoas inteligentes serão impedidas de fazer qualquer reflexão para não ofender os imbecis”. Dá para imaginar a cena de um neointelequitual desse diante do espelho, sem entender por que o movimento labial não batia: enquanto dizia “gênio” em estado quase orgástico, os lábios da imagem refletida pronunciavam “imbecil”. Provavelmente uma reação do espírito zombeteiro do feiticeiro Grigori Rasputin determinado a proteger seu prodigioso compatriota. Pena que não haja bruxaria suficiente para impedir que uma horda de estúpidos espalhe esse tipo de porcaria pelas redes em segundos e provoque um orgasmo coletivo de ignorância.

Um importante fator de desvirtuamento é ampliar o conceito de “liberdade de expressão” para qualquer manifestação, inclusive os ataques ideológicos e ofensas. Essa acomodação leniente gerou um filhote, que começa num simples dislike (não gostar) e chega à cultura do cancelamento – uma forma de punição por meio das redes sociais. Não raro, algo que descamba para insultos e destruição de reputações sem qualquer fundamento, devastando as vítimas com injustiças, exposições violentas, exclusões de amizades virtuais, isolamento social e danos psicológicos. “Não preciso que Elon Musk me dê aula de liberdade de expressão. Ele decide quanta liberdade de expressão permite na plataforma dele. Tal liberdade não foi concebida para isso, portanto, dá poder a agentes malignos”, argumenta Kara Swisher. “Contribuintes pagaram pela internet. Tomaram algo que pagamos, e depois tomam as decisões que afetam a sociedade, que causam impactos, seja vício, ou insurreição, ou radicalização, mas não são responsabilizados. E não fizemos nada a respeito. Zero”, ela complementa.

A pandemia de Covid-19 foi um grande catalisador para revelar o pior das redes sociais, talvez porque todos estavam amedrontados e sem saber em quem confiar. Foi um momento terrível em que a ciência foi confrontada por todo tipo de desinformação, e muitos oportunistas tentaram ganhar notoriedade emitindo opiniões que colocaram em risco a saúde coletiva. Sem pudor e impunes. “Queremos ter certeza de que a liberdade de expressão pode ser exercida. Porém, a tal liberdade não permite que você grite ‘fogo!’ numa sala de cinema. Então precisamos repensar e buscar outra solução”, argumenta Anthony Fauci, um dos principais especialistas mundiais em epidemias, que liderou o grupo criado pela Casa Branca para combater o coronavírus e foi vergonhosamente atacado na ocasião.

O outro lado da indústria de desinformação tem terreno fértil: uma sociedade deseducada, desinformada, desinteressada, sempre pronta para trocar a realidade pelas narrativas absurdas que circulam em seus grupos de convivência digital. Esse é o berço de teorias da conspiração cada vez mais criativas e estapafúrdias que, de forma inacreditável, abduzem a mente até de pessoas com boa formação intelectual e instalam uma espécie de paranoia coletiva. “Acho que a desinformação é perpetuada por todos nós. Não é algo cuja culpa podemos jogar só nas redes sociais por não terem práticas melhores. Acho que também temos de nos manter vigilantes do que perpetuamos em nossas próprias plataformas”, afirma a cantora Lady Gaga.

A desinformação e a intolerância precisam ser incluídas no grupo dos principais inimigos a combater, para que a sociedade comece a recuperar a sanidade social. É constrangedora a cena de um cidadão americano entrevistado num evento eleitoral afirmando categoricamente “Barack Obama ajudou no 11 de Setembro porque nunca estava no escritório, vivia curtindo férias”. Além de afirmar que não sabia por que Obama não estava no Salão Oval naquele dia trágico, ignorava completamente que o presidente dos EUA na ocasião era George W. Bush – Obama assumiria o cargo somente oito anos depois. “Se seu único tipo de premissa é que você não sabe o que acha que sabe, não pode ir a lugar algum, vai ficar preso no mesmo lugar”, reflete a professora Elise Wang, cujo trabalho acadêmico é focado em direito, literatura e história, com destaque para o estudo das teorias da conspiração.

Bill Gates defende publicamente o incremento do consumo de carne vegetal pelos países ricos, por entender que isso terá impacto positivo na luta contra as mudanças climáticas e aumentará a competitividade na indústria de alimentos. Em resposta, não demorou a surgir uma das mais recentes teorias da conspiração envolvendo o nome do bilionário: ele teria projetado uma nova espécie de carrapato capaz de provocar alergia à carne tradicional em quem for atacado. O objetivo é que a vítima passe a consumir carne vegetal. Chegam ao cúmulo de afirmar que cerca de 450 mil americanos já foram vítimas. “Nosso desejo humano de poder coexistir e pensar em termos de país ou de mundo, em vez de ‘nós contra eles’, em nosso próprio país, é um desafio […] Agora, com a desinformação, tal progresso está em risco, mas espero que possamos minimizar o dano da desinformação e continuemos a melhorar a condição humana”, afirma Gates.

Um carrapato com tal grau de especialização… Convenhamos, nem o melhor autor de realismo fantástico chegaria a tanto! “Está difícil escrever ficção científica […] Acho que muito da angústia que sentem por aí é bem parecida com o que as pessoas sentem no início da demência. Porque abrem mão do controle. E no que isso resulta? Raiva, medo, ansiedade, depressão. Porque você entende que não vai melhorar. Vai ser algo progressivo. Então, se quisermos que a IA prospere e seja canalizada para usos produtivos, como aliviamos essa ansiedade? Acho que esse deveria ser o desafio da comunidade de IA agora”, afirma James Cameron.

Os efeitos psicológicos e efetivos das tecnologias sobre postos de trabalho não são novidade. Já na Antiguidade, Aristóteles fez referência a harpas que um dia tocariam sozinhas desempregando harpistas. Toda mudança tecnológica vem cercada de discussões sobre desaparecimento e surgimento de atividades produtivas e empregos. Nestes momentos, sempre se estabelece uma convivência estranha entre desconfortos e oportunidades, e muita gente fica para trás. Qual o efeito que a IA terá sobre os empregos das pessoas? Esta é a pergunta que ninguém consegue responder honestamente. Tampouco como serão as compensações trabalhistas que começam a entrar nos discursos.

A revolução das máquinas já é uma realidade no ambiente corporativo. No Brasil, a IA substituiu vagas humanas em 10% das empresas, segundo pesquisa conduzida pela MIT Sloan Management Review – ligada ao Massachusetts Institute of Technology (MIT) – em parceria com o Instituto Locomotiva. Embora 74% dos gestores entrevistados nesse estudo declarem que a tecnologia é complementar ao trabalho humano, será difícil impedir que máquinas sem direitos trabalhistas ocupem cada vez mais espaço. Ainda mais num país com uma legislação trabalhista tão polêmica quanto a nossa.

A disseminação da IA nos coloca numa espécie de encruzilhada: conviver com os usos científico, produtivo e pernicioso de uma mesma tecnologia. Enquanto a sociedade começa a sofrer ataques criminosos difíceis de enfrentar em razão da sofisticação – falsificação de imagem e som estão cada vez mais precisas –, as utilizações científicas e produtivas são animadoras.

A indústria e o setor de prestação de serviços já experimentam os benefícios da automatização de tarefas, análise de dados e tomada de decisões, com reflexos imediatos no aumento da produtividade, redução de custos, segurança no trabalho, previsão de demanda e customização plena às necessidades dos consumidores.

Há diversos sinais positivos de que educação e saúde serão duas áreas que receberão grandes benefícios da nova tecnologia, especialmente porque há enorme carência de professores no mundo e, nos países pobres, a maioria das pessoas atravessa a vida inteira sem estar diante de um médico.

No ambiente da educação, a IA vem causando grande transformação. Além de ampliar exponencialmente a base de pesquisa, oferece novas ferramentas para tornar a aprendizagem mais eficiente, envolvente e personalizada, a ponto de adaptar o conteúdo para a necessidade individual do estudante.

Na saúde, já é possível registrar avanços que parecem ficção científica. Uma ferramenta chamada Sybil realiza não apenas a avaliação do estado atual do paciente oncológico, mas prevê o futuro. Num determinado exame, ela destacou um ponto de um pulmão que não apresentava sintomas da doença, mas, em dois anos, o paciente tinha um câncer exatamente naquele local em que a ferramenta se deteve no exame anterior.

No limiar dessa nova era em que a IA terá papel decisivo, uma pergunta cada vez mais frequente é “Quando vamos começar a regular isso?”, e o cineasta Cameron é taxativo: “Só porque um aviso parece banal, não significa que seja errado. Vou dar um exemplo do último grande símbolo de avisos ignorados: o Titanic. A todo vapor, noite adentro, pensando que, se aparecer um iceberg, basta virar, não é uma boa maneira de velejar”.

Muitos especialistas consideram que todas as preocupações que começam a pautar o debate público talvez virem fichinha diante do que poderá ocorrer num mundo em que a IA atinja um grau de excelência que lhe permita criar uma IA melhor, processo que poderá avançar numa progressão ascendente, descontrolada e incalculável. Estaremos diante da superinteligência artificial, algo que não conseguiremos sequer compreender, muito menos imitar. Menos ainda, controlar. “Nós estamos muito acostumados a ser as coisas mais inteligentes do planeta. E estamos, de forma sábia ou não, mudando isso. Estamos criando algo bem mais inteligente do que nós”, acredita o escritor Tim Urban. “Acho que o melhor que podemos fazer é concordar com algumas regras básicas na hora de criar modelos de IA que resolvam nossos problemas e não nos matem ou nos machuquem de verdade”, alerta Kevin Roose, colunista de tecnologia do jornal The New York Times.

Apesar de vivermos numa era de enorme geração de riqueza, o velho problema da sua má distribuição mantém o quadro de desigualdades que flagela o mundo. O pior é constatar que uma parte disso é resultado de interferência de ideologias políticas impostas a populações sem acesso ao direito de livre escolha. “Nosso sistema de iniciativa privada, o capitalismo, gerou uma riqueza extraordinária. Não é perfeito, mas é melhor do que qualquer alternativa que vimos no mundo todo. Muitas pessoas têm vivido na pobreza no socialismo e comunismo por centenas de anos. Enfim adotaram, em parte, a iniciativa privada. A China, por exemplo, o fez, e curiosamente, centenas de milhões de pessoas saíram da pobreza […] Se quiser que as pessoas saiam da pobreza e tenham oportunidades melhores, há pouquíssimos remédios melhores do que o crescimento. Se a economia cresce, se há novos negócios contratando mais pessoas, eis a chance de as pessoas saírem da pobreza”, acredita o senador republicano Mitt Romney, em cuja carreira política tem destaque a discussão dos papéis do governo e do setor privado na sociedade. “Socialismo é um fantástico sistema para tornar pessoas igualmente pobres. Capitalismo torna pessoas ricas de forma desigual. Na história de toda a humanidade, os países que prosperaram são aqueles que têm mais fluxos. Fluxos de ideias, de capital, de pessoas e de poder. Podemos lembrar por que economias crescem? Seja Henry Ford com o Modelo T ou Bill Gates com a Microsoft, qualquer coisa que crie bons empregos ajuda tanto o empregado quanto o executivo. Ou seja, o piso aumenta, e o teto também. E onde políticas públicas devem entrar? Na redução da diferença entre o piso e o teto”, complementa Thomas Friedman, escritor e colunista do The New York Times.

Uma grande dificuldade para enfrentar esse desnível econômico-social foi moldada pela polarização ideológica, que retira a urgência dos problemas públicos. “Políticas públicas que ajudam a superar a pobreza ficaram em segundo plano. Nossos partidos políticos estão meio desorientados, não sabem bem que rumo tomar. Meu partido, por exemplo, agora é formado, quase em sua maioria, de indivíduos sem educação universitária. São pessoas que, presumo, adorariam ver um salário mínimo mais alto, mas nossa ortodoxia no Partido Republicano tem sido, há muito, de não o aumentar, porque é a opinião geral do empresariado. Essa confusão foi, até certo ponto, responsável pela falta de progresso em alguns dos desafios que enfrentamos, então temos de lidar com isso. Significa mudanças na política fiscal? Significa a necessidade de cortes nos gastos? Absolutamente, sim”, reconhece o senador Romney.

Segundo dados da União Internacional de Telecomunicações (agência da ONU), cerca de 2,6 bilhões de pessoas não estão conectadas. Ou seja, 1/3 da população mundial passa longe do conceito de inclusão digital. Numa dicotomia desse porte, a tendência é um desequilíbrio enorme no acesso aos avanços tecnológicos que começam a inquietar a parte abastada, exatamente pelos excessos consentidos pela falta de qualquer regulamentação do setor.

Também é importante considerar que esses avanços poderão acentuar ainda mais a divisão do mundo entre desenvolvimento e atraso. Na parte rica do globo estão populações com vidas confortáveis e todo tipo de acesso, apesar de muitos bolsões de pobreza. Na parte pobre vivem populações miseráveis cercando poucos bolsões de prosperidade. O ponto comum entre essa mesma humanidade são as doenças. Umas provocadas pelos excessos, outras pela falta de quase tudo.

A sociedade moderna já não consegue disfarçar o desconforto de viver sob intensa pressão, estresse e desencanto. A vida parece ter ficado besta e desinteressante, sem perspectivas além da rotina de sobrevivência, futilidades e fantasias digitais. Chegamos ao epílogo dessa indigência intelectual galopante que só consegue traduzir o quadro como “O mundo está muito chato!”.

O excesso de tecnologia criou a uma falsa ideia de autossuficiência que apenas maquia o que ela tem causado de fato: um individualismo veemente e doentio. Isso impede a convivência, o compartilhamento de conhecimento, o amadurecimento afetivo e as trocas de experiências, e a juventude não é instigada a repetir comportamentos questionadores e desbravadores dos jovens das gerações anteriores, que geraram grandes construções e conquistas. Ao contrário, paira uma sensação de que essa garotada de hoje não consegue se encantar com coisa alguma e, por isso, não cria casca mundana para encarar os desafios da vida, disfarçando seu conservadorismo precoce em discursos libertários que tem dificuldade de praticar.

Além de problemas para construir carreiras e ganhar a vida, as dificuldades com produtividade, tomada de decisões e relacionamentos geram um clima de desconfiança e resistências nos chefes. Sem contar o apego a trabalho híbrido, ascensão rápida, vantagens, redução de jornada presencial e outros interesses pessoais embrulhados num pacote largo chamado “qualidade de vida”, que terminam estabelecendo um campo minado na relação com o mercado de trabalho. Não por menos, a Geração Z tem ganhado as manchetes pela quantidade de problemas que gera e enfrenta no âmbito pessoal e profissional, assustando o mundo com a perspectiva de que terá de ocupar o comando em duas décadas.

Um momento em que todos se sentem infelizes com este modelo social que dá inúmeros sinais de esgotamento pode ser boa oportunidade de mudança. “Acho que estamos chegando ao limite, onde muitos de nós estão reconhecendo que este sistema atual está nos esmagando. Está nos isolando, nos fragmentando, nos deixando loucos”, reconhece Ramesh Srinivasan.

Por que não atacar verdadeiramente a pobreza antes de gastar fortunas para encontrar meia dúzia de agulhas no palheiro do espaço sideral? Por que não melhorar a vida no planeta que nós estamos destruindo, antes de buscar outro lugar para levar o que sobrar da humanidade? “A pobreza está muitas vezes ligada ao aspecto financeiro, e não falamos sobre as chagas mentais que ela pode causar em uma pessoa […] Permeia todos os aspectos da sua vida. Isso, por si só, gera uma resposta traumática. O que acaba acontecendo é que você se vê em um constante estado de sobrevivência. Você não consegue olhar adiante e fazer planos de longo prazo porque está preocupada com o jantar. Quando está focada em sobreviver, sua mente não consegue parar. Não há tempo para planejar o futuro. Não há espaço para sonhar” reflete Ariana Marbley, microempresária.

Por que não investir verbas igualmente siderais nas ciências humanas em busca da felicidade através de uma vida mais racional e menos desigual? Quem determinou que é inadequado incluir felicidade como política pública? Até quando seguiremos hipócritas em relação à desigualdade? “Gosto do termo ‘desigualdade’. De forma irônica, é uma palavra inclusiva. Ela faz pensar na relação entre as pessoas no topo e aquelas que lutam para sobreviver. Vivemos neste espectro compartilhado que também inclui bilionários. O que é preciso para encurtar o abismo entre o que você tem e o que você precisa para não apenas sobreviver?” questiona Andrea Elliott, repórter investigativa do The New York Times.

Passou da hora de iniciarmos o processo que nos devolva a convivência civilizada. Ecoando Lady Gaga, observar melhor os conteúdos que movimentamos nas redes. Decidir (re)aprender que as relações humanas se dão por afeto, convivência, respeito, trocas… Entender que nada substitui os valores humanos e que não somos máquinas. “Sou da roça, em Irará a gente é criado com ternura perto da gente”, relembra o músico tropicalista Tom Zé, lúdico, lúcido e vanguardista aos 88 anos.

Talvez a infelicidade geral nos leve a não ter como fugir de um processo de reconciliação geral. Estamos indo de pior a pior nesse clima de discórdias sem contexto, de transformar quem discorda em inimigo. Há gente manipulando muito bem os seguidores em favor próprio, criando conflitos para os bobos brigarem. E os bobos são tão bobos que acreditam fazer parte de algo. Chegam a pensar que têm relevância nas discussões relevantes. “Há algumas coisas que você pode fazer para ser menos babaca com quem discorda. Primeiro, leia livros. Esqueça seus pensamentos um pouco e encare outra perspectiva. Segundo, viaje. Para qualquer lugar. Busque experiências, mesmo por perto. E terceiro, dê o braço a torcer. Se pudermos criar pessoas sãs que digam: ‘É, acho que me enganei’, então, há esperança”, provoca o comunicador e comediante Jordan Klepper. Afinal, ninguém sabe o que vem a seguir, e máquinas não oferecem ombro amigo.

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