Por Heraldo Palmeira
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2 de abril de 2025

Olhar do tempo

Reprodução/Chico&Caetano/Rede Globo

Olhar do tempo

  • Heraldo Palmeira

“O que será que me dá | Que me bole por dentro, será que me dá | Que brota à flor da pele, será que me dá | E que me sobe às faces e me faz corar” (Chico Buarque)

GIRAMUNDO COM SAUDADE Corria o ano da graça de 1986 e a Rede Globo sacudiu o mercado musical com Chico & Caetano – série de programas mensais exibida de abril a dezembro –, onde Chico Buarque e Caetano Veloso recebiam convidados nacionais e internacionais. Acredite, isso aconteceu! Acredite também, fazia parte da grade de programação da mesma “linha de shows” que hoje está entregue a figuras impronunciáveis apresentando lixo por música.

Não sem motivo, rever o agora lendário Chico & Caetano (disponível no Globoplay) pode levar às lágrimas quem realmente gosta de música. Afinal, aquilo é um relicário das melhores coisas que um autêntico ambiente artístico-cultural pode proporcionar. É um desfile do verdadeiro talento da criação, um louvor à música brasileira como uma das melhores do mundo, que contou com participações especiais de artistas estrangeiros de ligação estreita conosco como Astor Piazzolla, Mercedes Sosa, Pablo Milanés e Silvio Rodriguez.

Teve também a presepada de Tim Maia que, para não perder o costume, não apareceu na gravação do programa e a produção se virou exibindo cenas do ensaio do “Síndico”. E a “tela quente” porque Chico prometeu letrar uma melodia do Piazzolla para lançarem no programa, não cumpriu, e o gênio argentino partiu para as vias de fato no camarim – por sorte, o magnânimo Tom Jobim também era um dos convidados da mesma noite e acalmou os ânimos com sua harmonia única.

Um dos momentos inesquecíveis da série é O Que Será (À Flor da Pele), em que Chico recebe Milton Nascimento para um dueto (link abaixo) e a entrada de Bituca com aquele vocalise é metafísica. A prova é o olhar deslumbrado de Chico, impossível de decifrar (foto). Talvez o olhar de um artista genial que vê sua obra divina cantada pela voz de Deus.

Como se não bastasse tudo que ofereceu para nos encher de orgulho musical brasileiro – algo que as novas gerações não têm conseguido alcançar, preservar e se orgulhar –, o programa marcou a reconciliação de Chico com a Globo.

Os motivos dessa escaramuça histórica nunca foram inteiramente esclarecidos. Certa feita, Chico externou seu desgosto porque a emissora proibiu sua presença em qualquer programa exatamente quando ele passava por sérias dificuldades financeiras. Mais adiante, quando resolveu falar a respeito, o anonimato da decisão colocou uma pitada de revolta. “Porque nunca ninguém se responsabilizou pela proibição, porque a Globo é prepotente, resolvi me afastar voluntariamente de seus programas. Chegaram a dizer que não precisavam de mim. Eu também não preciso dessa máquina desumana, alienante. Então, estamos quites. […] Não é preconceito, mas pós-conceito”, explicou.

Não são poucas as pessoas que andam sentindo falta de tempos que foram certamente melhores. E isso não é ataque de nostalgia, é um tipo de memória feliz que cada vez mais tem dado as caras em muitas conversas entre amigos. Sim, as pessoas andam em busca de boas lembranças para encarar esses novos tempos tão áridos. Como se houvesse redenção numa andança de saudade imensa “que aperta o peito e que não tem mais jeito de dissimular. Que não tem descanso. Que nem todos os santos, unguentos e toda alquimia vão aliviar. Que perturba o sono. Que queima por dentro feito uma aguardente que não sacia”.

É esse olhar do tempo que reabre o passado numa música, como se houvesse uma porta entreaberta para dias melhores onde pudéssemos reviver aquelas crianças tão crianças que fomos combinando um futuro, acreditando que o dia ia raiar só porque uma cantiga ensinou.

História É impressionante o efeito da energia criativa de uma obra construída pela soma de grandes talentos. Os cineastas Bruno Barreto e Eduardo Coutinho, e o escritor e roteirista Leopoldo Serran adaptaram para o cinema a obra literária Dona Flor e Seus Dois Maridos, um dos clássicos de Jorge Amado. O filme foi dirigido por Bruno Barreto e a trilha sonora encomendada a Chico Buarque e Francis Hime.

A música O Que Será? foi composta em 1976 para o filme e ganhou três versões:

O Que Será (Abertura), versão para o filme gravada por Simone (1976).

O Que Será (À Flor da Terra), gravada por Chico Buarque no álbum Meus Caros Amigos (1976).

O Que Será (À Flor da Pele), gravada por Milton Nascimento no álbum Geraes (1976).

Chico Buarque declarou ter visto o copião do filme diversas vezes, mas a maior inspiração para compor esse clássico foi uma série de fotografias de Cuba mostradas pelo escritor e jornalista Fernando Morais, embora afirme que a letra não tem referências à ilha caribenha.

Em 1992, o compositor teve acesso à sua ficha no Dops, onde estava registrada a interpretação dos censores para a letra. “Acho que eu mesmo não sei o que existe por trás dessa letra e, se soubesse, não teria cabimento explicar”, declarou em entrevista ao Jornal do Brasil.

Trechos incidentais Andança (Edmundo Souto-Danilo Caymmi-Paulinho Tapajós) | O Que Será [À Flor da Pele] (Chico Buarque) | Maninha (Chico Buarque)

Veja aqui

O que será (À Flor da Pele)   https://www.youtube.com/watch?v=lkRe-6evscY

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