Divulgação/Netflix
Os bilhões e os parasitas
- Heraldo Palmeira
GIRAMUNDO VIU “E daí? Dizem que somos generosos demais. Vão à merda!”, esbravejou de forma surpreendente uma madame Liliane Bettencourt totalmente fora do seu estilo refinado e discreto. Ela era a então herdeira única do império de cosméticos L’Oréal, ocupando o posto de mulher mais rica do mundo.
O clichê popular que anuncia “uma história real, de tão extravagante, mais parece um roteiro de ficção” cai como uma luva para A Bilionária, o Mordomo e o Namorado. Série documental francesa lançada pela Netflix em três episódios, revira a investigação e a cobertura da mídia do famoso Caso Bettencourt, resultado da briga entre a mãe Liliane Bettencourt e a filha Françoise Bettencourt Meyers. Esta obra passa a compor um cardápio cada vez mais interessante de documentários disponíveis nas plataformas de streaming. E vale maratonar.
Para realizar o documentário que nos coloca no ambiente dos super ricos sem qualquer filtro, os diretores Baptiste Etchegaray e Maxime Bonnet se debruçaram sobre gravações de áudio secretas realizadas de forma prosaica pelo mordomo da mansão da matriarca Liliane Bettencourt, que chegaram à Justiça e à mídia e instalaram um escândalo que eletrizou a França e o mundo entre 2007 e 2013.
As revelações retiradas dos áudios, que pretendiam desmascarar François-Marie Banier – fotógrafo da cena cultural parisiense e suposto namorado de madame Bettencourt –, terminaram desnudando também uma horda de parasitas que vivia ao redor dela e sugava impiedosamente a enorme fortuna da família. Numa reviravolta inesperada, surgiram indícios de fraudes fiscais e eleitorais operadas pela família ao longo de décadas, por meio de evasão de divisas e financiamento ilegal de políticos de todas as ideologias.
Muitos analistas consideram que esse episódio liquidou a reputação e a carreira do ex-presidente Nicolas Sarkozy – que a bilionária chega a tratar como “paquera” numa das conversas gravadas e terminou preso. O título da versão brasileira é econômico, pois antecipa apenas três ingredientes do enredo, a bilionária, o mordomo e o namorado. Já o original francês O Caso Bettencourt: Escândalo na Casa da Mulher Mais Rica do Mundo é muito mais adequado.
Há quem compare as agruras de Liliane Bettencourt e Elizabeth II, talvez pelas semelhanças garantidas por fama e fortuna. Guardadas as diferenças de popularidade e dos impérios que comandaram, ambas tiveram poder e fortuna por herança e vivenciaram solidão, renúncias e dores que vêm agregadas no enorme pacote de privilégios que a vida lhes entregou de bandeja.
Estopim Liliane Bettencourt vivia solitária. Ela e o marido tinham aposentos separados numa mansão encravada no elegante subúrbio parisiense de Neuilly-Sur-Seine. Com 20 empregados domésticos permanentes e regiamente pagos, parecia repetir em pleno século 21 o sistema feudal de serviçais tão bem mostrado na premiada série Downton Abbey (Netflix). Na verdade, trabalhar para a família Bettencourt em seu palacete era uma espécie de emprego de ouro que ninguém queria perder.
Enquanto Liliane vivia seu drama pessoal de administrar o tédio de uma vida conjugal com um homem frio e distante, além de um relacionamento complicado com a filha única, enfrentou diversas crises depressivas. Outro ponto chamava atenção: a circulação de dinheiro em espécie na mansão, onde era comum o fluxo de envelopes abarrotados saindo do cofre para as mãos da criadagem e de prestadores de serviços.
Em 1987, a revista intelectual-chique francesa Egöiste, dedicada a artes e cultura, com destaque para moda e fotografia, pautou uma entrevista com a bilionária e escalou o fotógrafo François-Marie Banier para ilustrar o texto. O título da matéria, baseado numa frase dela, não podia ser mais premonitório: “Passada certa cifra, as pessoas surtam”.
Homossexual assumido, de personalidade contagiante, ele chegou como um furacão revirando tudo. Foi ao closet dela, interferiu diretamente no figurino, no cabelo, na cor do batom e transformou a sessão de fotos em algo instigante.
A matéria teve grande repercussão porque a entrevistada, famosa pela discrição, apareceu nas páginas da revista com um ar jovial, como uma mulher simples e diferente de tudo que se via dela – um perfil muito mais próximo da senhora de quase 1,80 m, esguia, lépida e capaz de manter uma bateria regular de exercícios físicos de gente bem mais jovem. Segundo a própria filha comentou à época, “mamãe se sente linda nas fotos”.
Enquanto a criadagem ficou horrorizada com aquele homem exagerado que largou a moto de qualquer jeito no átrio da casa e urinou sobre as flores do jardim, o encantamento dela criou uma amizade instantânea e ele começou a levá-la a eventos sociais e culturais, inserindo-a num mundo completamente novo.
Banier logo passou a frequentar a mansão, ter longas conversas com a empresária e sua chegada trouxe a sensação de alegria e liberdade para a vida dela. A partir dali e por muitos anos, Liliane, o marido André e a filha Françoise passaram a frequentar o ambiente do fotógrafo (padrinho de uma filha do ator Johnny Depp), repleto de artistas, intelectuais, celebridades e membros do jet set.
Com o passar do tempo, Liliane deixou a tristeza e o recolhimento e, sempre custeando todas as despesas, começou a viajar constantemente com o novo amigo. Também passou a regar a amizade com presentes caríssimos – obras de arte e dinheiro –, cuja soma teria chegado a impressionantes € 917 milhões (R$ 4,86 bilhões). Não demorou, ele passou a incomodar a criadagem da mansão com seus modos pouco refinados e pelo cenário de controle que montou sobre a vida da empresária para auferir vantagens.
Mesmo assim, vozes relevantes enxergavam a situação de outra maneira. “Ele salvou a vida dela. Ele deu uma vida a ela. Ela era muito grata por isso e retribuía com a única coisa que tinha: dinheiro”, argumenta o escritor Tom Sancton, autor de O Caso Bettencourt. “Considerando a fortuna dela, não era grande coisa para ela, ela tinha muito”, corrobora Raphaëlle Bacqué, jornalista do Le Monde.
Mas o indignado mordomo Pascal Bonnefoy tinha outra visão e passou a posicionar um gravador diminuto na bandeja em que servia chá e acompanhamentos enquanto Liliane recebia suas visitas no escritório da mansão – quase sempre o gestor da fortuna Patrice de Maistre, o advogado pessoal Georges Kiejman e a contadora encarregada das despesas particulares Claire Thibout, que se queixou à patroa do assédio do fotógrafo ligando até para a casa dela, a qualquer hora, pedindo dinheiro.
Na verdade, Banier foi o menos exposto nas gravações, já que costumava manter suas conversas com a bilionária em outros locais da mansão, principalmente no quarto, fora do alcance do equipamento.
Em dado momento, Bonnefoy repassou os áudios para a filha da patroa. A gota d’água que fez tudo transbordar pingou por ocasião da morte do patrão André. Poucos dias depois, ignorando o luto de Liliane, Banier tentou convencer a viúva a adotá-lo como filho, e Françoise resolveu agir judicialmente contra o que considerou exploração das fraquezas da mãe, idosa, abalada pela perda e dando sinais de senilidade. Com o desenrolar do caso, descobriu-se que havia a minuta de um documento anterior para que ele fosse transformado em herdeiro único da empresária, e que na juventude o fotógrafo já havia tido comportamento aproveitador contra outra idosa rica.
História O químico francês Eugène Schuller, também considerado um gênio dos negócios, criou uma fórmula inovadora de coloração capilar em 1907, que batizou de Oréale. Depois de fabricar e vender seus produtos a cabeleireiros parisienses, criou em 1909 uma pequena empresa que se transformaria no império de cosméticos L’Oréal. Hoje, a empresa tem cerca de 40 marcas, mais de 85 mil empregados ao redor do mundo, mantém uma política agressiva de aquisições, investe muito em novas tecnologias e na diversidade de produtos para nichos específicos de consumidores.
Liliane perdeu a mãe aos cinco anos e sua educação foi confiada pelo pai a freiras dominicanas. Em 1937, ao completar 15 anos, a filha única passou a trabalhar na empresa como aprendiz. Com a morte de Schuller (1957), ela herdou a participação de 32,99% que ele detinha na companhia.
Fortuna atual Neta do fundador da L’Oréal, aos 70 anos Françoise Bettencourt Meyers repete a posição que a mãe ocupava: é a mulher mais rica do mundo, dona de uma fortuna estimada em US$ 94 bilhões (R$ 462,48 bilhões). A maior parte vem das ações da empresa deixada pelo avô. Também tem participação societária na Nestlé e outros bens avaliados em bilhões de dólares, além de propriedades imobiliárias de alto valor. Tornou-se diretora da L’Oréal em 2007 e assumiu a presidência da Téthys – holding que controla os negócios da família – em 2012.
Françoise sempre se manteve distante da vida de alta sociedade e exposição midiática dos pais e desenvolveu uma carreira paralela de escritora dedicada a mitologia grega e relações judaico-cristãs.
Desencontros familiares A história da família controladora da L’Oréal é repleta de controvérsias muito anteriores ao escândalo retratado no documentário da Netflix.
Um dos pontos mais nebulosos remete ao início do século 20, quando Schuller teria sido um dos financiadores e oferecido a sede da empresa para reuniões do La Cagoule, violento grupo fascista, antissemita e anticomunista francês acusado de assassinatos, atentados a bomba, sabotagem de armamentos e outras atividades de caráter terrorista – a revista Time comparou o La Cagoule à Ku Klux Klan norte-americana.
Durante a Segunda Guerra o empresário apoiou o colaboracionismo do governo de Vichy aos invasores nazistas. Com o fim do conflito, a L’Oréal contratou como executivos vários membros da La Cagoule e a herdeira Liliane se casou (1950) com um deles, André Bettencourt, que se tornou ministro em três ocasiões, nos governos de Charles de Gaulle e Georges Pompidou. Sobre ele circulavam comentários de não se interessar muito por mulheres.
Bettencourt, descendente de família nobre católica, também carregou pontos obscuros em sua biografia. Entre 1940 e 1942 escreveu mais de 60 artigos para La Terre Française, jornal financiado pelos nazistas durante a ocupação da França. Num deles, publicado na Páscoa de 1941, descreveu os judeus como “fariseus hipócritas, raça manchada para sempre pelo sangue dos justos”. Na maturidade, tentou tratar essa passagem como “erros da juventude” e acrescentou: “Eu expressei repetidamente meu arrependimento em relação a eles em público e sempre implorarei à comunidade judaica que me perdoe por eles”.
Françoise, filha única de Liliane e André, sempre teve uma relação delicada com a mãe, que não escondia a decepção com a menina – reclamava que ela não tinha graça, vaidade, ambição e capacidade para assumir os negócios da família. Madame considerava a moça desajeita e lerda e chegou a afirmar, conforme consta nas gravações clandestinas: “Não vou carregar minha filha a vida toda. Para mim é quase insuportável pensar que minha filha vai herdar a L’Oréal. Isso me incomoda muito”.
Em 1984, Françoise se casou com Jean-Pierre Meyers, empresário judeu descendente de uma linhagem de rabinos e neto de Robert Meyers (rabino morto no campo de concentração de Auschwitz). A partir do matrimônio, ela se converteu ao judaísmo e criou os dois filhos como judeus – em determinado trecho das gravações do mordomo, Liliane pergunta se um dos seus netos tem traços característicos de judeu.