Reprodução/Arquivo Nacional
Pesos e medidas
- Onildo Menezes
Eu nunca acreditei no Mário Lobo Zagallo. Eu sempre achei Zagallo exatamente um exemplo capital e definitivo de como pessoas totalmente incompetentes terminam transformadas em algo muito diferente pela mídia. Em competentes, inclusive. Um jogador medíocre, que era o substituto e jogou em dois times importantes – Flamengo e Botafogo –, e na Seleção, sem qualquer brilhantismo individual, hoje merece, de forma insistente e forçada, que se tente interpretar e transformar sua total incapacidade de ser um grande craque numa ideia de que era um gênio capaz de mudar o futebol para uma nova mentalidade defensiva, e outras coisinhas do gênero.
Quando vim morar no Rio, escolhi a Urca para viver porque trabalhava no bairro. O futebol fazia parte da minha vida desde muito cedo, inclusive como jogador (zagueiro) de campeonatos amadores. Por isso, transformei em programa prazeroso assistir aos treinos do Botafogo, já que General Severiano era ali ao lado.
Aquilo se tornou um dos meus grandes lazeres na nova cidade. Ora, eu havia chegado do Nordeste, onde acompanhava pelo rádio o brilhante futebol carioca da época, recheado de craques. E muitos deles estavam ali, pertinho de casa, treinando as maravilhas que apresentavam em campo e enchiam os olhos e os gogós de Waldir Amaral, Jorge Curi e João Saldanha nos principais microfones esportivos.
Nas minhas muitas idas a General Severiano testemunhei o time sendo comandado por Tim, Sebastião Leônidas (em duas ocasiões), Paraguaio, Paulistinha, Zagallo (em duas ocasiões), Telê Santana, Paulo Amaral, Zezé Moreira… Nunca vi Zagallo, já tricampeão mundial, mostrar nada de especial nos treinamentos. Os jogadores tocavam a coisa toda, com raras interferências dele. Ninguém me contou, fui testemunha ocular. E também joguei bola com envolvimento suficiente e fui dirigente esportivo para falar com propriedade.
Ele foi ponta-esquerda medíocre numa época em que o Santos tinha na posição um jogador referido no mundo inteiro como craque. Quando Pelé chega ao time, Pepe, o camisa 11, já era celebridade mundial porque o clube excursionava muito por outros países. Você tem histórias de Pep Guardiola falando dele com devoção.
A filosofia aplicada em campo por Guardiola como treinador sempre revelou pontos de inspiração no futebol brasileiro, confessada pelo próprio espanhol. E um dos seus grandes ídolos foi exatamente Pepe, de quem foi jogador no Al-Ahli, no Qatar.
Guardiola tinha grande curiosidade pelo Santos, Pelé, Clodoaldo (inspiração para a posição, o espanhol também era volante) e a Seleção de 1970, time que surge como uma das grandes bases táticas aperfeiçoadas por ele quase 50 anos depois. E some-se a convivência que ele também teve com Cruyff no Barcelona.
Que ninguém tome como um desses exageros da mídia, as conversas entre os dois viravam, por gosto de Guardiola, monólogos em que o velho Canhão da Vila falava sobre os tempos que jogou no Santos e na Seleção. “O Guardiola sempre falou muito do futebol brasileiro comigo. Ele gostava dos jogadores extraordinários que o Brasil teve e ainda falava muito sobre tática, sobre as jogadas ensaiadas que via no passado. Ele era uma espécie de auxiliar já. Treinava com os outros a parte física, técnica, e a tática comandava lá dentro de campo, como jogador”, revela Pepe. “Fico feliz quando ele diz que ‘aprendeu com o seu Pepe’. Guardiola aprendeu muito sobre treinamento técnico e tático comigo, tenho certeza. É prazeroso carregar a sensação de ter comandado o Guardiola. Privilégio que me torna um cara ainda mais feliz”, orgulha-se o craque da ponta-esquerda temido pelo chute fortíssimo.
Engraçado, a mídia nunca conseguiu encontrar um grande craque internacional que tenha tido Zagallo como referência de alguma coisa. Aí você é obrigado, com a morte, a testemunhar essa coisa de ser elogiado por todo mundo, inclusive desafetos. Na verdade, ele lutava por essas coisas de reconhecimento a qualquer custo dia e noite, a cada segundo. Como jogador, era sempre o segundo ponta convocado e havia muitos outros melhores do que ele. Pepe era sempre o titular e se machucou antes das duas Copas (1958 e 1962). Daí surgiu a galhofa de que o reserva recorria a centros espíritas e terreiros de candomblé para intervir, fazê-lo titular.
Muita gente o via como um autêntico defensor da ditadura e por isso adversário de Saldanha, que não dava a mínima e teve a hombridade de elogiar publicamente a conquista de 1970. E o Saldanha só entrou no projeto daquela Copa porque a CBD estava nadando em corrupção, presidida por um homem da ditadura – João Havelange foi investigado pelos militares no governo Geisel e terminou escapando de punições porque se elegeu presidente da FIFA em 1974 (veja link abaixo). Com isso, precisava de um nome que ajudasse a “limpar a barra” perante a opinião pública. E foi Saldanha quem montou aquele supertime.
Zagallo deu a sorte de treinar a Seleção pós-Saldanha. Pegou tudo prontinho, podia mudar pouca coisa. E fazendo isso não conseguiu piorar muito porque tinha craques demais no elenco. Até deu certo quando resolveu manter a pose de ponta recuado e deslocou Rivellino. Dificilmente daria errado porque tratava-se de um jogador fora de série, embora Edu tenha ficado como reserva de luxo.
Barrou Joel Camargo, que era um cara boêmio, alegre e craque, e colocou Piazza na posição dele. Piazza que era volante, foi recuado para a quarta zaga. Por diversos motivos mesquinhos perseguiu Afonsinho, Marinho Chagas, Caju, Romário e mais alguns. O interessante é que todos tinham uma qualidade comum, eram craques, algo que parecia beirar a ofensa para ele.
Sempre tive uma consciência do exagero que se dava a essa trajetória e sabia que quando ele morresse eu ia ficar ouvindo essa latomia toda. Aí veio um novo sofrimento, quando dias depois morre Beckenbauer, que também foi jogador e técnico. Há logo uma comparação a Zagallo. São as distorções que vão acontecendo historicamente com essa imprensa que nem belisca o que houve em 1970, por exemplo. Que se ocupa em alimentar uma bobagem mística ao redor do número 13 quase como um cânone que nunca obrou milagre algum.
O Kaiser foi um craque, inventivo, criativo, futebol refinado, que transformou o zagueiro numa peça que podia ter função ofensiva. Ao contrário do que Zagallo fazia, pois, se pudesse, todo o time era zagueiro, jogaria apenas no contra-ataque.
Vamos sendo martirizados com as distorções da mídia, as comparações são as mais absurdas possíveis. Chegaram ao sacrilégio de comparar Zagallo a Pelé, um sujeito incomparável em qualquer tempo! O Beckenbauer tem uma fama que flutua na mesma galáxia de Pelé, tanto que foram juntos para o Cosmos no projeto de implantar o futebol nos EUA. E você pode dizer tudo que quiser dos americanos, menos que são burros. Gozado, Zagallo nunca trabalhou por lá. Imagino que seja porque os caras não entendem nada de futebol, tanto que chamam de soccer.
*ONILDO DE MENEZES, psiquiatra e cronista do cotidiano
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