
Divulgaçao/TV Cultura
Pimentinha oitentona
- Heraldo Palmeira
“Respeitem a maior cantora desta terra!”, bradou Caetano Veloso em maio de 1973 no Centro de Convenções do Anhembi, em São Paulo, para uma plateia que recebeu com frieza Elis Regina na mostra Phono 73, patrocinada pela gravadora Philips.
O primeiro nome da menina gaúcha filha de Romeu de Oliveira Costa e de Ercy Carvalho, nascida na Beneficência Portuguesa de Porto Alegre em 17 de março de 1945, veio de uma Miss Elis, personagem de um romance de amor que a mãe estava lendo. No cartório, o escrivão disse que não aceitaria registrar apenas Elis Carvalho Costa, pois o nome ficaria dúbio, se masculino ou feminino, e exigiu que o pai arranjasse outro nome feminino “para colocar depois desse ‘Elis’ aí”. O homem lembrou de uma sobrinha recém-nascida e emprestou o “Regina”. A criaturinha que, adulta, ficaria encerrada em 1m54 de altura já chegou chegando.
A passagem dos 80 anos de Elis Regina Carvalho Costa deixa no ar a certeza de que ela se manteve na transversal do tempo de várias gerações e agora transita gloriosa nas redes sociais de um público cada vez mais jovem. Sempre na vanguarda!
Para festejar à altura, foram anunciadas diversas novidades no mundo audiovisual. Remixagem em Dolby Atmos do álbum Elis (1973). Relançamento do disco póstumo Luz das Estrelas (1984) restaurado com IA. Lançamento do documentário Elis por João (HBO/Max). Comemoração dos 50 anos do show e do disco Falso Brilhante. Tudo a cargo do primogênito João Marcello Bôscoli.
No mesmo terreno (audiovisual) tem mais. O documentário Elis com a Palavra, do diretor Hugo Prata, baseado na obra de Allen Guimarães e realizado a partir de entrevistas e depoimentos da artista – haverá uma banda se apresentando ao vivo na turnê de lançamento. Um filme mostrando os bastidores da gravação do lendário álbum Elis & Tom (1974) produzido pela atriz Bianca Comparato.
O mundo impresso também diz “presente”. A edição ampliada da biografia Elis: Nada Será Como Antes (Companhia das Letras), de Júlio Maria. O livro em quadrinhos Elis: Uma Fantasia Biográfica (Record), de Gustavo Duarte.
Estreou na Rádio Farroupilha aos 12 anos, no Clube do Guri comandado pelo radialista Ari Rego. Em pouco tempo era uma das crianças que cantavam regularmente no programa, recebendo uma caixa de chocolates do patrocinador como cachê. A partir dali não parou mais.
Elis foi a primeira a inscrever a própria voz como instrumento na Ordem dos Músicos do Brasil. A menina que idolatrava Ângela Maria andava muito além do comum, sempre pela exclusiva trilha do supremo. Logo se revelou a outra face da moeda onde estava Milton Nascimento. Não à toa, Bituca a escolheu como musa, eles viveram o supremo afeto humano, um grande amor que se espalhou pelo país em forma de canções definitivas.
Sua carreira no mundo dos estúdios começou cedo, aos 16 anos, e teve uma fase inicial de quatro discos: Brotolândia (1961), Poema de Amor (1962, Elis Regina (1963) e O Bem do Amor (1963) – os dois primeiros pela Continental e os outros pela CBS. Neles, os produtores insistiram em fazer dela apenas uma cantora a serviço das modas de mercado em busca de boas vendagens. Os repertórios desses álbuns estavam repletos de canções açucaradas, boleros, sambas e versões populares. Como o sucesso não veio, ela retornou para Porto Alegre.
No fim de 1963, o produtor gaúcho Airton Patineti dos Anjos levou Elis para participar de um show coletivo no Teatro Álvaro de Carvalho, em Florianópolis, quando foi vista por Armando Pittigliani, um dos grandes produtores da época, que atuava na gravadora Philips.
O homem era uma lenda pela capacidade de descobrir novos talentos e estava de férias na cidade. Patineti não perdeu tempo e conseguiu arrastá-lo para o evento. No intervalo, Pittigliani foi aos bastidores e recomendou que ela abandonasse aquele repertório de versões, cantasse música brasileira e sugeriu incluir Chão de Estrelas na sequência da apresentação. Deixou um cartão com a moça e não deixou dúvida: “Procure-me depois de fevereiro”.
Ela desembarcou no Rio exatamente em 31 de março de 1964 e se instalou no edifício Richard, na rua Barata Ribeiro, 200. O prédio era do tipo “balança mas não cai”, seus 45 apartamentos por andar chegaram a abrigar 3 mil moradores ao mesmo tempo e ficou famoso com a peça Barata Ribeiro 200, do dramaturgo Paulo Pontes. Para limpar a barra da má fama marcada por confusões, escândalos e tragédias, os moradores conseguiram mudar o nome do espetáculo para Um Edifício Chamado 200 e o número do edifício para 194.
Pouco depois fez um teste para gravar em disco o espetáculo Pobre Menina Rica, com músicas de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, com arranjos de Tom Jobim. E foi exatamente o maestro já soberano quem vetou a participação dela, causando surpresa a todos. No fim, o disco saiu sem a voz dela e sem os arranjos de Jobim.
Assinou contrato com a Philips e, com a experiência adquirida no rádio ainda nos tempos de Porto Alegre, logo conseguiu trabalho na TV Rio para atuar em dois programas: Noites de Gala, com Ciro Monteiro, que se tornou seu grande amigo, e o humorístico A Escolinha do Edinho Gordo – formato que desaguaria em Chico Anysio –, onde era uma das “alunas” e contracenou com Wilson Simonal, Jorge Ben Jor e Trio Irakitan. Essa experiência na televisão terminou ampliando muito seus contatos no meio musical.
O próximo passo foi no lendário Beco das Garrafas, em Copacabana, no palco do Bottle’s apresentando Sosifor Agora, seu primeiro show. Antes da estreia, os produtores notaram sua deficiência cênica e chamaram o coreógrafo norte-americano Lennie Dale, que criou o famoso gestual agitando os braços e Rita Lee, sempre impagável, batizou de “Elis-Cóptero” e “Élice-Regina”. Em seguida, Miele e Ronaldo Bôscoli produziram um novo show dela, agora no vizinho Little Club, com um cachê melhor.
“Difícil”, “antipática”, “insegura”, “prepotente”, “instável”, “mais ardida que pimenta” eram adjetivos e expressões que costumavam acompanhá-la, até que o lirismo do Poetinha Vinicius de Moraes fez uma rima perfeita em seu mundo de diminutivos, definiu Elis como Pimentinha para todo o sempre e o resto é história.
Quando ela mudou para São Paulo, em 1965, a bossa nova entrava em seu declínio depois de uma década de dominância. Não é ironia que Arrastão tenha sido seu bilhete de entrada para o estrelato ao vencer o 1º Festival da Música Popular Brasileira, realizado pela TV Excelsior, dando início ao seu arrastão particular no meio musical. Distante da estética contida consagrada por João Gilberto e seus discípulos, dotada de extensão vocal privilegiada, afinação impecável e interpretações marcantes, Elis não demorou a se transformar na primeira grande estrela surgida nos festivais. E o lançamento de Samba – Eu Canto Assim (1965), seu primeiro disco na Philips, produzido por Pittigliani, virou sucesso imediato e apontou o verdadeiro rumo musical que a transformaria em maioral do canto..
Foi naquele ambiente dos festivais que Chico Buarque adquiriu um ranço com ela. Talvez ainda movido pelo espírito de rebeldia inconsequente da adolescência – quando chegou a ser preso roubando e destruindo carros com sua turma do Pacaembu –, resolveu tomar um banho antes de entrar em cena. Por molecagem, retirou a placa indicativa do banheiro feminino como desculpa para usar a instalação. A Pimentinha entrou, encontrou aquela cena, não achou graça nenhuma, e dá para imaginar a merecida descompostura que passou no festejado rapaz.
O arrastão seguiu com o programa O Fino da Bossa na TV Record (1965 a 1967), a monumental parceria com Jair Rodrigues que praticamente definiu o conceito de MPB e rendeu três álbuns históricos gravados ao vivo pela gravadora Philips – um deles, Dois na Bossa, foi o primeiro disco brasileiro a superar 1 milhão de cópias vendidas. Naquele momento, ela era o maior cachê do país.
“Intensa” foi um adjetivo que praticamente virou seu codinome. Emoção à flor da pele, andar na estreita trilha do supremo não significava apenas tudo que ela fez em estúdios e palcos. Vivia nela uma mulher que não temia o risco dos abismos. Visionária, libertária, feminista, militante política sem oportunismos midiáticos, fala direta, sempre esteve à frente do seu tempo.
Se foi capaz de embarcar naquela passeata boba contra a guitarra elétrica, não perdeu o compasso e escolheu o superlativo Hélio Delmiro e depois Natan Marques para guitarrearem em sua banda.
O fato de vir morar sozinha no Rio tão jovem prenunciava sua coragem, a mesma que guiou sua militância política, um lado pouco reverenciado, mas importantíssimo da sua trajetória. Ela enfiou uma pedra no coturno da ditadura quando, em entrevista concedida na Holanda (1969), afirmou que o Brasil era “governado por gorilas”. No retorno, foi interrogada, obrigada a se retratar e ficou atravessada na garganta dos militares, tendo sua vida devassada e acompanhada pelos órgãos de repressão.
O ano de 1972 marcou o Sesquicentenário da Independência e o governo fez de tudo para capitalizar aquele marco histórico, chegando até a organizar uma minicopa de futebol vencida pelo Brasil. Elis participou de um filme publicitário convocando a população a cantar o Hino Nacional no 7 de Setembro – uma campanha que também contou com Roberto Carlos, Marília Pêra, Paulo Gracindo, Tarcísio Meira e Glória Menezes – e cantou nas Olimpíadas do Exército. Como ela mesma revelou à jornalista Regina Echeverria para o livro reportagem Furacão Elis, foi obrigada pelos militares e se sentiu impossibilitada de recusar o “convite” porque haviam ameaçado seus filhos pequenos. A questão dos gorilas não havia morrido na retratação.
Por participar desses dois eventos foi massacrada pela imprensa e pela esquerda, com o ato mais covarde vindo de Henfil e a turma do Pasquim. O cartunista enterrou Elis duas vezes no Cemitério do Cabôco Mamadô, uma das suas criações no semanário e para onde ele mandava quem, na sua opinião unilateral, colaborava com a ditadura. “De repente, os artistas são arrebanhados pelo governo, só que – eu não sabia – debaixo de vara, de ameaças, para fazerem uma campanha da Semana do Exército. Eu não percebi o peso da minha mão. Eu sei que tinha uma mão muito pesada, mas eu não percebia que o tipo de crítica que eu fazia era realmente enfiar o dedo no câncer. […] Eu só me arrependo de ter ‘enterrado’ duas pessoas: Clarice Lispector e Elis Regina” afirmou o cartunista três anos após a morte da cantora. Mesmo arrependido, jamais foi capaz de pedir desculpas, mesmo sabendo que sua sentença impressa em papel-jornal fechou as portas do mercado para ela.
Elis foi capaz de “ressuscitar” dessas duas mortes e, tempos depois, procurou o amigo para dizer que o amava. Seguiu seu rumo de estrela irrequieta que, desde 1965, vinha abrindo as portas do mundo para gente então pouco conhecida, uma lista enorme que junta Edu Lobo, Chico Buarque, Sérgio Ricardo, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Ivan Lins, Gonzaguinha, Francis Hime, Guinga, Tim Maia, Fagner – a quem abrigou em casa por três anos –, Belchior, João Bosco, Aldir Blanc, Sueli Costa, Renato Teixeira…
A mesma Elis que gerou discos lendários, inclusive o fabuloso Elis & Tom (1974) onde terminou dando régua e compasso à produção depois das grosserias, humilhações e ironias de Jobim dirigidas a ela e seu marido César Camargo Mariano. O maestro soberano criticava Mariano pelo seu gosto por pianos elétricos, duvidou da sua capacidade para escrever arranjos do disco e criou obviamente um clima péssimo no ambiente da produção, em Los Angeles. Na verdade, há quem considere que o gênio estava inseguro com tantas novidades e com a presença sempre desafiadora da baixinha.
E daí? Foi o presente que ela escolheu da gravadora Philips pelos dez anos de contrato, era algo que desejava e conquistou, com seu nome vindo primeiro na capa. O disco é uma obra-prima, o repertório é todo jobiniano com arranjos marianos impecáveis, o encontro com Tom acalmou o jeito de Elis cantar, Elis levou a obra de Tom a outro público e o mundo foi o grande presenteado.
Elis continuou sendo uma pedra na botina da ditadura. Basta pensar em sua coragem de, num trecho do show Falso Brilhante (1975), aparecer ajoelhada, presa a uma barra como se estivesse numa sessão de tortura, enquanto cantava Agnus Sei de forma desafiadora: “Ah, como é difícil tornar-se herói | Só quem tentou, sabe como dói | Vencer Satã só com orações…” – Satã uma clara alusão à ditadura.
Falso Brilhante é um marco no ambiente musical brasileiro. Ficou em cartaz de 1975 a 1977 no Teatro Bandeirantes, em São Paulo, com 257 apresentações vistas por 280 mil pessoas. De quebra, gerou o disco homônimo, um dos grandes momentos da carreira de Elis.
A Pimentinha cutucou o Cão com vara curta mais uma vez em 1976, sendo a primeira pessoa a visitar Rita Lee na prisão, acusada de porte de drogas. Ela chegou ao Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) carregando o filho João Marcello Bôscoli, então com seis anos, e fez barulho: exigiu que comprassem comida adequada, pois Rita estava grávida do primeiro filho, e ameaçou chamar a imprensa caso ela não fosse solta. “Ô, Ovelha Negra, tem uma cantora famosa rodando a baiana, dizendo que vai chamar a imprensa. Ela quer te ver”, anunciou o carcereiro – Rita sempre afirmou que a droga foi plantada em sua casa pelos agentes, até porque havia suspendido o consumo em razão da gravidez.
Naquele mesmo ano engrossou o esforço da classe artística a respeito do paradeiro do pianista Tenório Júnior, que sumiu em Buenos Aires durante uma excursão de Toquinho e Vinícius – tudo leva a crer que tenha sido confundido com algum guerrilheiro pela repressão argentina, ficou preso em La Plata e depois foi assassinado. “Parece que ele saiu pra passear em Buenos Aires na semana do famoso pente fino, antes da queda de Isabelita em 1975, esqueceu os documentos no hotel e sambou. Nunca mais ninguém viu. […] O Vinícius fez de tudo. Agora a gente esbarra no: ‘Mas o que a senhora é dele?’. ‘Eu sou amiga’. ‘Ah, não adianta. A família mesmo é que tem de ajudar’. O governo brasileiro também”, Elis declarou em entrevista ao caderno Folhetim do jornal Folha de S.Paulo, em 1979.
Ela era a figura direta que nunca se escondeu em palavras amenas para dizer o que desejava. Nessa mesma entrevista, perguntada a respeito da gravadora Mocambo, que pretendia ser uma grande companhia de discos brasileira tocada por artistas, não gaguejou: “Bom, o Chico tem o projeto, mas ele continua na PolyGram, certo? (Risos). Quando ele sair, eu até vou pra gravadora dele. […] Onde estão as pessoas que são líderes da Mocambo? O Paulinho da Viola não saiu da Odeon, o Chico não saiu da PolyGram, o MPB-4 não saiu da PolyGram; quer dizer, como é que você vai endossar um empreendimento em que os próprios empreendedores não estão colocados dentro dele?”. Pimenta ardida pura!
Os jornalistas levaram a conversa para a mesmice do mercado musical e o arrastão continuou. “Eu estou querendo pegar o maior número de compositores desconhecidos pra gravar, pra arejar um pouco. Está ruço. Está todo mundo contando as mesmas histórias, está um circo de elefantinho, todo mundo gravando as mesmas músicas ou a mesma linha de composição, porque é tudo feito pelo mesmo compositor. Um pouco desse desinteresse de parte do público talvez seja por causa disso. […] Por exemplo, vamos falar das mulheres. Pega Simone, Bethânia, Elis e Gal, você sabe que, basicamente, o repertório é o mesmo. E que são sempre os mesmos seis caras, compondo há 15 anos. Eu quero furar esse bloqueio”. E arrematou reclamando da falta dos festivais, além de TV, rádio e jornais não estarem abertos aos novos artistas.
Elis se envolveu de corpo e alma na campanha pela Lei da Anistia (promulgada em 1979), que libertou presos políticos e permitiu a volta dos exilados. Por ironia do destino, gravou O Bêbado e a Equilibrista, que se tornou o “Hino da Anistia” e citava “a volta do irmão do Henfil”, Betinho, o mentor da Ação da Cidadania, que estava exilado.
Elis marcou o mercado de shows com três espetáculos antológicos: Falso Brilhante (1975), Transversal do Tempo (1977) e Saudade do Brasil (1980). Construiu sua carreira com técnica impecável e interpretações antológicas – Vou Deitar e Rolar (Quaquaraquaquá) dá bem a dimensão da sua ousadia. Não parou em nenhuma fórmula. Ao contrário, dominava com maestria diversos estilos musicais. Foram 27 álbuns e quase outro tanto de compactos simples e duplos, que venderam um total de 4 milhões de cópias.
Mesmo quando se tornou estrela suprema comparada a Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald e Billie Holyday, Elis mantinha um estilo de vida deliciosamente simples que incluía andar de chinelos, roupas comuns, supermercado, praia e restaurantes com os filhos.
A mulher na vanguarda de tudo, enfiada até o pescoço em questões espinhosas como desvalorização e direitos dos artistas e músicos brasileiros, dependência das gravadoras internacionais, renovação da MPB, hegemonia da TV Globo, luta política, feminismo – peitando a “homarada” que dominava todos os setores – e cantando como ninguém. “Se você olhar as fotos da época, é sempre ela cercada por homens. Quero contar essa história de uma mulher, em um mundo masculino, conquistando seu espaço e conseguindo trazer a identidade e a voz dela”, derrete-se a atriz Bianca Comparato. “Elis era uma mulher forte, que bancava suas opiniões, algo que tem tudo a ver com as discussões de gênero dos dias atuais”, destaca a jornalista e pesquisadora musical Chris Fuscaldo.
O tempo é senhor de tudo e o distanciamento mostra como Henfil errou feio ao condenar, por impulso e sem conhecer todos os dados, uma mulher muito maior do que ele e indispensável ao processo de redemocratização do país.
A mulher profética que, naquela mesma entrevista de 1979, parece ter espiado o futuro: “Em qualquer área está assim: me dá o meu. Essa é a filosofia reinante. Clima de últimos dias de Pompeia. Eu não sei o que está pra acontecer porque está todo mundo na caça ao dinheiro, com uma força que eu fico até com medo. […] Agora, existe uma coisa chamada tempo, que está solta por aí. O mundo não para de rodar. Ele é redondo. Sai daqui e pra aqui volta, sabe? E vai chegar uma hora que esse pessoal vai ter que se explicar. Ou, se não quiser se explicar, a tal da máscara da face vai cair”.
“Respeitem a maior cantora desta terra!”, ecoa até hoje o brado de Caetano Veloso. Afinal, Elis Regina Carvalho Costa nos deu de presente duas décadas carregando a divindade na voz. E uma coragem gigante no corpo de uma mulher de pouco mais de metro e meio. Coisa de Pimentinha, ardida como ela só.
Os porões da ditadura rondaram uma última vez, quando o laudo da sua causa mortis (cercado de controvérsias) foi assinado pelo médico Harry Shibata, então diretor do IML (SP). Era o mesmo homem acusado de orientar torturadores sobre como não deixar marcas de suas ações. O mesmo homem considerado culpado de maquiar laudos de necrópsia para encobrir torturas do regime militar. O mesmo homem que atestou os “suicídios” do metalúrgico Manuel Fiel Filho e do jornalista Vladimir Herzog – sem ter visto o corpo do jornalista.
Elis foi sepultada depois de um cortejo fúnebre acompanhado por 15 mil pessoas pelas ruas de São Paulo. Vestia a camiseta que usaria no show Saudade do Brasil, proibida de aparecer no palco pelos militares porque reproduzia uma bandeira do Brasil onde ela havia trocado Ordem e Progresso por Elis Regina. Saiu saindo.
Bem disse a jornalista Helô Machado, “Parece que Elis se foi para sempre e não partiu nunca”. Ainda bem que existem gravações a granel em vinil, CD, DVD, Blu-ray e nas plataformas, bem como vídeos com grandes momentos dela em televisões e palcos do mundo. É a nossa garantia de que Elis vai continuar pelaí. “Sem nheconheco, bicho! Valeu?”.
Ouça aqui
Elis & Tom https://open.spotify.com/intl-pt/album/3SE9n6EaVOJ81KA1KPLUWS?si=FM0JX8SHQfa7yBzZxWReVA
Falso Brilhante https://open.spotify.com/intl-pt/album/18p3b48JyIK5XY90JmWxET?si=QsrdoyHrSHGFdnJuazIyKw
Transversal do Tempo https://open.spotify.com/intl-pt/album/2dmjkMPkDZmhJHnYFrtfjz?si=KnTIWCqkR0KxiTKicwbLfQ
Saudade do Brasil https://open.spotify.com/intl-pt/album/6NmxRn9HcxEBx38qi9MGqa?si=D-xNZfWvSFebcqB3_3opjg