Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

Pixinguinha novinho em folha

Reprodução/Agência Brasil

Pixinguinha novinho em folha

  • Heraldo Palmeira

O que é bom nunca é demais. Este fevereiro de 2023 marca o cinquentenário da morte de Alfredo da Rocha Vianna Filho, que a voz popular batizou Pixinguinha muito antes de saber que ele seria um dos maiores bambas da nossa música, um dos responsáveis diretos por dar forma definitiva ao choro.

Para homenagear a data e a memória do artista, a gravadora Deck está produzindo a série de discos Pixinguinha Como Nunca, que será composta de quatro álbuns com 50 músicas instrumentais inéditas criadas em diferentes fases pelo gênio de Piedade. A programação da produção é estar com todo esse material disponível nas plataformas digitais até abril.

O projeto tem direção artística do músico e ator Marcelo Vianna, neto de Pixinguinha, e a direção musical foi entregue a Henrique Cazes, músico, arranjador e pesquisador dedicado da obra do compositor. O trabalho foi facilitado porque Pixinguinha era extremamente organizado e deixou um enorme acervo rigorosamente guardado em pastas, onde estão partituras e arranjos sinfônicos e para rádio – pena que o rádio tenha ficado ignorante, certamente aquém dessa parte do tesouro que lhe foi dedicado – nem orquestra tem mais!

Por sorte, todo esse material foi comprado dos herdeiros pelo Instituto Moreira Salles, nossa garantia de que estará preservado adequadamente. E foi dali que saiu a maioria das músicas incluídas neste projeto da Deck.

O primeiro dos discos, Pixinguinha Virtuose (link abaixo) já está disponível nas plataformas. Para gravá-lo, Vianna e Cazes fizeram um delicado garimpo para escolher os músicos, um cuidado indispensável para tornar públicas de forma adequada obras inéditas de alguém do porte de Pixinguinha. Assim, a missão foi entregue a um sexteto de altíssimo nível: Carlos Malta (flauta e sax), Henrique Cazes (arranjos e cavaquinho), João Camarero (violão de sete cordas), Marcelo Caldi (sanfona), Marcos Suzano (percussão) e Silvério Pontes (trompete).

Cazes dá a letra a respeito da missão: “Foi um desafio encontrar o tom certo, o instrumento que renderia mais em cada melodia, o solista ideal. Não queríamos que soasse como algo antigo ou que já havia sido feito. Reunimos músicos que tivessem o olhar de mexer na tradição, mirando o futuro, que não tivessem aquele viés conservador, que, a meu ver, é tão nocivo ao choro e o coloca sempre em um lugar do passado”.

Pixinguinha sempre esteve associado à modernidade, à sofisticação e Vianna dá uma boa pista ao lembrar que “Ele sempre deixou os músicos à vontade. A modernidade dele não estava só nas melodias, mas no caminho que propunha”.

Talvez impregnado pelo material a que teve acesso, Cazes vai mais longe quando sugere que é preciso observar a diversidade criativa de Pixinguinha, inclusive para não deixá-lo aprisionado nos limites do choro. Afinal, o acervo oferece também modinhas, polcas, pontos de macumba, tangos e valsas.

Pixinguinha Como Nunca mal começou a chegar ao mercado – apenas Pixinguinha Virtuose foi lançado – e seus desdobramentos já começam a ser anunciados. O primeiro é um 5º disco, com 11 músicas que ganharão letras e cujo lançamento está previsto para abril. Estão gastando tinta Arnaldo Antunes, Cecilia Stanzione, Eduardo Gudin, Guinga, Nei Lopes, Paulinho da Viola, Paulinho Moska, Paulo César Feital e Salgado Maranhão. E para dar voz cantada a essas novidades a lista tem (por enquanto) Cecilia Stanzione, João Cavalcanti, Leila Pinheiro e Nilze Carvalho. O segundo “filhote” do cinquentenário é o livro Pixinguinha, um Perfil Biográfico, obra de André Diniz pela Numa Editora – uma nova edição da fotobiografia Pixinguinha, O Gênio do Tempo (2012), construída em textos leves e cerca de 200 imagens, algumas publicadas pela primeira vez naquela ocasião. A nova edição virá com capa do artista plástico Melo Menezes, terá texto complementar assinado por Vianna e discografia comentada por Cazes. O terceiro produto deverá ser mais um álbum de inéditas.

Na verdade, já tivemos tempo suficiente para entender que Pixinguinha está muito além da música, é um dos mais notáveis mestres da cultura brasileira. O maestro Guerra Peixe já avisava a qualquer candidato a dirigir orquestras que Pixinguinha era o ponto de partida a ser seguido. Mais recentemente, Chico Buarque sapecou um inconteste “Pixinguinha é inconteste” na letra de Paratodos (1993). Muito além do choro, o moleque da Piedade mexeu nas estruturas da música brasileira de forma definitiva. Não é à toa que terminou reconhecido como São Pixinguinha.

Historieta Alfredo da Rocha Vianna Filho tinha 13 irmãos – quatro do primeiro casamento da mãe. Filho de Alfredo da Rocha Vianna e Raimunda Maria da Conceição, foi um moleque carioca nascido no bairro da Piedade, na região do Grande Méier, Rio de Janeiro. Logo de cara há duas notas diferentes na partitura da vida dele, o nascimento tem duas datas citadas: 23 de abril e 4 de maio de 1897 (esta certificada por registro em cartório). Eram tempos em que dia de nascimento e dia de registro faziam confusão corriqueira no registro civil das pessoas. Tanto que a primeira terminou estabelecida como Dia Nacional do Choro, data em que provavelmente se deu o nascimento.

A avó africana Edwiges passou a chamá-lo Pizindin (menino bom no seu dialeto natal), transformado em Pixinguinha pela prima Eurídice depois da fusão com Bexiguinha, por conta das marcas deixadas em seu rosto depois de contrair bexiga (varíola) na época da epidemia.

Cresceu num ambiente familiar cheio de música, onde todo mundo tocava algum instrumento e os irmãos foram responsáveis pela sua iniciação musical. O pai, flautista amador, era funcionário do Departamento Geral dos Telégrafos “nas horas vagas”. Doido por música e colecionador de partituras de choro, gostava de promover serenatas em casa, com a presença de músicos ilustres como Heitor Villa-Lobos, Sinhô, Quincas Laranjeira, Bonfiglio de Oliveira e Irineu de Almeida (Irineu Batina). As reuniões ocorriam desde que a família foi morar em um casarão na rua Bela Vista, na subida do aprazível e boêmio bairro de Santa Teresa.

O menino ficava quieto durante as reuniões musicais, fascinado com choros, lundus, polcas e valsas do repertório. No dia seguinte tirava de ouvido o que ouvira na noite anterior, utilizando uma flauta de folha – instrumento improvisado com talos de plantas. Diante daquilo, o pai resolveu iniciar o filho no instrumento de verdade. Ele tinha oito anos.

Como a casa de oito quartos estava sempre cheia, e ainda tinha um porão onde abrigava hóspedes amigos da família – Sinhô, Bonfiglio e Irineu (exímio flautista que passou a dar aulas a Pixinguinha e tornou-se grande amigo) –, logo foi apelidada e ficou famosa como “Pensão Vianna”.

Impressionado com a rapidez do aprendizado do filho e seu progresso na execução do instrumento, o pai deu-lhe de presente uma flauta italiana Balancina Billoro, número de série 2.424, ao custo de 600 mil réis. O som límpido e preciso que ele tirava do instrumento já anunciava o grande virtuose que estava a caminho. E foi com ela que passou a tocar bailes, quermesses e fez sua primeira gravação em 1911, no conjunto Choro Carioca, liderado por Irineu.

Pixinguinha contava 14 anos quando estreou profissionalmente como flautista do rancho carnavalesco Filhas das Jardineiras – os ranchos eram agremiações carnavalescas tipicamente cariocas e ancestrais das escolas de samba –, onde conheceu Donga e João da Baiana. No ano seguinte já se apresentava em bares, cabarés e cassinos da Lapa e boates da praça Tiradentes levado pelo irmão Otávio Vianna (China), também músico. Pouco depois vieram diversas casas noturnas, salas de cinema e o teatro de revista.

Tornou-se exímio instrumentista, compositor, arranjador e maestro, além de um dos responsáveis diretos pela formatação definitiva do choro como gênero musical. Também ficaram famosos os grupos que montou, dentre eles o Oito Batutas, que em 1919 passou a se apresentar no Cinema Palais, local frequentado pela classe alta carioca e onde Rui Barbosa e Ernesto Nazareth marcavam presença. Embora todas as apresentações ficassem lotadas, não faltavam críticas ao figurino, ao repertório e ao fato de 4 integrantes serem negros.

Dali até 1922 o Oito Batutas realizou uma grande turnê, que percorreu o Brasil e chegou a Buenos Aires e Paris. De quebra, o grupo participou da primeira transmissão de rádio feita no país (1922). Virou atração fixa do Salão Assyrio (1928), no subsolo do Theatro Municipal, local histórico que abrigou restaurante famoso, cabaré e foi palco de espetaculares bailes de máscaras no Carnaval do Rio – agora faz parte do roteiro de visitas guiadas do teatro.

Pixinguinha assumiu o posto de arranjador da gravadora Victor em 1929 e seu trabalho foi um divisor de águas, porque ele deu um toque brasileiro às orquestrações e criou introduções belíssimas para as músicas gravadas. Seu trabalho na indústria fonográfica seguiu por toda a década de 1930.

João de Barro (Braguinha) escreveu a letra de Carinhoso em outubro de 1936 para uma apresentação beneficente. Orlando Silva gravou a música em 1937 e, no outro lado do vinil, estava a valsa Rosa (letra de Otávio de Souza). As duas viraram clássicos imediatos da música brasileira. Logo em seguida, Pixinguinha foi contratado como arranjador e regente da orquestra da poderosa rádio Mayrink Veiga.

Os primeiros anos da década de 1940 trouxeram tempos difíceis gerados pelo excesso de bebida, demissão da emissora e crise financeira aguda. O alcoolismo tinha causado problemas nas mãos e na boca, impedindo-o de tocar flauta. Foi aí que Pixinguinha adotou o sax tenor. A sorte começou a mudar a partir da parceria estabelecida com o flautista Benedito Lacerda, que rendeu 34 discos e algumas das melhores gravações de choros já registradas.

O famoso radialista Almirante levou-o para a Rádio Nacional em 1945 e os dois foram contratados pela Rádio Tupi no ano seguinte. Na nova emissora produziram O Pessoal da Velha Guarda, um programa de grande sucesso que ficou no ar de janeiro de 1947 a março de 1952. Paralelamente, Pixinguinha foi nomeado para o cargo de professor de música na prefeitura do Rio – lecionava nos bairros da Saúde e Vila Isabel.

Jogando com o destino, continuou batendo ponto diário na Wiskeria Gouveia, na travessa do Ouvidor, que ficou conhecida como “Escritório do Pixinguinha” e mantinha no salão uma cadeira onde apenas ele podia sentar. Os anos de 1958 e 1964 marcaram sua vida com duas grandes crises cardíacas – na segunda, passou 20 dias internado e compôs uma música por dia no hospital.

No fim dos anos 1960, morando no bairro de Ramos, ele precisava dar poucos passos todas as manhãs para chegar ao vizinho Bar São Jorge, informalmente conhecido como Bar da Viúva, reduto de delícias portuguesas. Pixinguinha chegava vestindo pijama na companhia da mulher Betty e do cachorro. Seu pedido era invariavelmente cerveja preta e uma porção de tremoços (cereal em conserva servido como petisco). A presença ilustre garantiu fama ao boteco, que também tinha Baden Powell entre seus frequentadores – o lugar serviu de cenário para o filme Saravah (1972) e a produção deixou uma estátua de Pixinguinha de presente, que hoje domina a cena da calçada. O bar segue funcionando rebatizado Bar da Portuguesa e recebeu o título de Patrimônio Cultural Carioca.

Pixinguinha viveu seus últimos anos recebendo muitas homenagens e com pouco dinheiro no bolso. Ele partiu em 17 de fevereiro de 1973, apenas sete meses depois de sua Betty. Foi uma morte absolutamente poética. Cedo, seus amigos, o produtor cultural Hermínio Belo de Carvalho e o fotógrafo Walter Firmo (autor da foto mais famosa do artista em que ele está sentado numa cadeira austríaca de balanço, olhando para o céu com ar de mistério e o saxofone no colo) foram visitá-lo. Em respeito ao amigo, Firmo sequer levou a câmera, para não revelar sua decadência física. Depois, confessaria seu arrependimento ao jornalista e biógrafo Sérgio Cabral (pai) porque, segundo disse, o gesto de despedida de Pixinguinha na janela de casa foi “a foto que não fez”.

Era o segundo sábado antes do Carnaval. O músico seria padrinho do filho de um rapaz a quem ajudara na chegada ao Rio de Janeiro e o batizado estava marcado na igreja de Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. Também ocorreria o primeiro desfile anual da Banda de Ipanema, cujo cortejo termina desde sempre na porta do templo.

Pixinguinha sofreu infarto fulminante durante a cerimônia religiosa e foi atendido na sacristia. Caía um temporal sobre Ipanema e a banda seguia pelas ruas. O agitador cultural Albino Pinheiro, que comandava a orquestra, foi avisado que seu amigo acabara de morrer logo adiante. Decidiu não parar o desfile.

A partir daqui, temos duas versões. A primeira garante que Pinheiro decidiu não divulgar a notícia e seguiu com o desfile, guardando sozinho a imensa dor e tentando homenagear o amigo querido. A segunda assegura que a notícia foi logo divulgada e os foliões resolveram seguir em cortejo até a igreja – consta que cantando apenas Carinhoso até lá.

Pedindo licença poética à verdade e mesmo aceitando as duas versões, é claro que prefiro a segunda. O que importa é que a decisão de seguir com o desfile permitiu que Pixinguinha morresse como um verdadeiro batuta, em clima de Carnaval, dentro de um dos lugares lindos do Rio, ao som da Banda de Ipanema, com o céu derramando as lágrimas devidas. Nada mais adequado para um santo da música se apresentar ao Criador. Tanto que a passagem se deu dentro de uma de Suas casas.

Hoje, um grande painel de azulejos com um sax e a partitura de Carinhoso homenageia o gênio na estação do metrô de Ipanema. A mais perfeita tradução de quem morou a vida inteira na Zona Norte, fez carreira tocando em blocos e casas de espetáculos famosos e virou um ícone da sua cidade. Mais carioca, impossível!

Veja aqui

Saudades de Cafundá   https://www.youtube.com/watch?v=kYNmf7IrZhg

Ouça aqui

Pixinguinha Virtuose   https://open.spotify.com/album/1CW4srDBHkicy9qyycY97B?si=brFpAf8HRZKiVu0mYlwgCw

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