Por Heraldo Palmeira
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18 de maio de 2025

Prazeres finos

Divulgação/Polydor

Prazeres finos

  • Heraldo Palmeira

“Prazeres finos, beijos molhados de Moët & Chandon” (Cyro Telles-Heraldo Palmeira)

GIRAMUNDO OUVIU O sábado amanheceu modorrento, céu nublado, vento entrando pela casa, “bonito pra chover” como aprendi na infância na linguagem dos rincões sertanejos. Foi nesse clima que a rede social operou um milagre cada vez mais raro: oferecer algo bom. Claro, a postagem tinha procedência, veio de um amigo figura rara. Autoexplicativo.

O vídeo mostra o cantor Sting em sua sala vivendo um momento especial, de enorme prazer: abrir um disco de vinil novinho em folha. Ele estava diante de um trabalho próprio que acabara de chegar às suas mãos, o álbum duplo Sting 3.0 Live, a versão deluxe lançada em 12 de abril com 17 músicas – a versão padrão, com dez músicas (link abaixo), foi lançada em 25 de abril.

Costumo não cair na nostalgia. Costumo não empoeirar o que deve continuar brilhando além da memória. Por isso sempre lamento que as novas gerações tenham perdido tantas coisas imperdíveis. Claro que as novas tecnologias são fantásticas e de enorme utilidade para simplificar a vida. Entretanto, enquanto o homem desejar se manter inquieto, permanecerão indispensáveis algumas liturgias que deixaram de ser hábitos e se transformaram em traços culturais.

É a cerveja que deverá estar sempre estupidamente gelada para honrar a parceria com um legítimo copo de vidro de botequim – o tal “americano” – que nenhum Stanley americano alcançará, porque não se trata de manter a loura gelada, ela precisa ser apreciada antes de esquentar. Não há vinho que suporte (ou mereça) a humilhação de um copo de plástico. Não há restaurante refinado que exale o charme decadente de um verdadeiro pé-sujo. Não há camarote luxuoso de estádio que repita o clima que havia na geral. Não há tela capaz de reproduzir o tato traduzindo as filigranas do infinito contido numa folha de papel de um livro, o cheiro de guardado, o amarelado do tempo, as anotações feitas e por fazer nas bordas com pintas de ferrugem.

Não há streaming que reviva a sensação de abrir um vinil, ver as imagens e ler aquelas letras graúdas espalhadas pelo projeto gráfico (capa e encarte), que libere a eletricidade estática do envelope de plástico (arrepiando os pelos do braço) e tenha as respostas de frequência do bolachão em simbiose com a agulha. Claro que a modernidade pode se aliar, como temos agora o vinil de 180 g que evita as antigas oscilações dos discos empenados – o braço do toca-discos era quase um surfista subindo e descendo ondas.

A imortalidade de certas coisas intriga os espíritos mais modernosos – os modernos não abandonam os melhores segredos, entendem que o tempo mais avançado tem passado. Em qualquer época o tempo do hoje oferece desafios e descobertas todos os dias, mas haverá sempre a teimosia dos parâmetros que não desaparecem. Sorte de quem souber enxergá-los. Sorte maior de quem desfrutá-los.

É ótimo estar em bermuda, camiseta, chinelo e ouvindo uma play list numa dessas plataformas digitais, pois dá para fazer muitas outras coisas ao mesmo tempo. O ritual contido em ligar um “power trio” Technics (toca-discos), Yamaha (receiver) e B&W (caixas), colocar um vinil, se esparramar no sofá com uma cervejinha gelada por testemunha, sem fazer nada além de ouvir revela a diferença entre prêt-à-porter e alfaiataria.

Continua impossível comparar uma pérola artificial feita de vidro, plástico ou resina e uma gema verdadeira envolvida em nácar produzida no fundo do mar. A arte do vinil é uma das pérolas verdadeiras que ninguém reproduz em laboratório. Está entre aqueles “prazeres finos, beijos molhados de Moët & Chandon”. Felizes dos que se deixam tocar.

Novo momento Sting está cumprindo agenda de shows pelo meio do mundo e a surpresa fica no fato de o álbum ter sido lançado com a turnê ainda em andamento, algo incomum na indústria. Não há surpresas no repertório, apenas um desfile de canções preciosas que se tornaram sucessos planetários – algumas nunca tinham sido lançadas em versões ao vivo – de um artista que não precisa provar mais nada.

Sting coleciona 17 Grammy, é membro do Rock and Roll Hall of Fame and Museum e, mesmo assim, segue visceral na capacidade de se reinventar e renovar canções que poderiam estar simplesmente deitadas na fama. Algo normal num artista com inquietação criativa suficiente para se manter numa busca constante por novas leituras musicais do próprio trabalho.

O formato power trio escolhido para a turnê e álbum Sting 3.0 Live oferece um resultado de elevadíssima qualidade técnica e química evidente entre os músicos Sting (baixo, guitarra e voz), Dominic Miller (guitarra) e Chris Maas (bateria). Um encontro musical que faz jus ao que a lenda inglesa forjou primeiro como líder do grupo The Police e depois em uma consagrada carreira solo onde passou a namorar com o jazz, pop, world music e até o clássico.

Em tempos de bloqueio criativo, nada como um bom passado devidamente passado a limpo. Ainda mais quando soa assim, tão inovador que parece uma bela novidade inédita.

Trecho incidental   Metropolis (Cyro Telles-Heraldo Palmeira)

Ouça   Sting 3.0 Live https://open.spotify.com/intl-pt/album/4r8JECF7FXyBaIKLdNfRJa?si=3ThhDpsKSeKnWKbolKny0A

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