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Quem souber, me conte
- Hayton Rocha
Faço parte de alguns grupos de WhatsApp de ex-colegas de trabalho. Vira e mexe, dou de cara com um post anunciando o silêncio definitivo de um deles, seguido daquela fila de condolências, votos de pêsames, de uma boa passagem, de um bom lugar na eternidade.
Ninguém diz, mas certamente sempre tem alguém ruminando: “Logo fulano! Por que não beltrano?”. Se algum beltrano me lê agora, peço não levar isso muito a sério. Faz parte da natureza humana.
E tem aquele curioso querendo saber a causa do passamento, como se isso fosse relevante àquela altura, ao que alguns se apressam em responder convictos: “infarto fulminante”, “parada cardiorrespiratória”, por aí.
A pergunta carrega em si um pensamento um tanto egoísta e sutil: quer o inquiridor apenas “confirmar” se estaria fora de risco. E cresce a fila de posts:
– Como foi possível? Infartou com todos os exames em dia? – indaga um.
– Parecia tão disposto… – comenta outro.
– A morte só quer um pretexto… Vai ver foi a vacina! – especula o terceiro.
Desconheço o sessentão como eu que não faça uso de pelo menos uma bengala química para se manter de pé, ativo e saltitante. Exceto os mentirosos, claro, os quais nunca chegam nem aos 50. Muitos subestimam os efeitos colaterais dos remédios sob o argumento de que as bulas representam apenas precaução da indústria farmacêutica, temendo processos judiciais.
Outros não admitem que a causa mortis pode ter sido o desencanto com a espécie humana, sobretudo com figuras próximas. Ou com as dores que toda manhã alertam para o correr dos anos. Ou ainda com a incoerência de uns que discursa sobre a ineficácia de vacinas, mas que, de boné, máscara e óculos escuros, toma até as doses de reforço.
Não me lembro de ninguém que encerrou sua jornada neste plano que não tenha puxado uma última lufada de oxigênio, seguida de um derradeiro batimento cardíaco. Nem de quem tenha sofrido um colapso sob aviso prévio de 30 dias, datado e rubricado. Soa discutível, portanto, falar de parada cardiorrespiratória ou infarto fulminante como causa mortis depois de certa idade da vítima.
Parece coisa daquele velho médico, já com a bateria em petição de miséria de tanto surfar no vai-e-vem das ondas científicas, que fecha um diagnóstico (quadro febril, com enxaqueca e mal-estar) olhando para o paciente como quem acaba de descobrir o segredo da vida eterna e decreta na maior caradura: “é virose!”.
Bem, se virose ainda é o nome que se dá para qualquer doença ou infecção causada por vírus, sou capaz de (vascaíno convicto) vestir uma camisa vermelha e preta e desfilar por aí se o ilustre doutor já não soubesse disso mesmo sem se dar ao trabalho de passar anos entre graduação universitária e residência médica. Melhor servir água gelada e cafezinho e predizer: “vai passar”. De uma forma ou de outra, tudo passa.
Sei que pareço outro velhote desses com o combustível na reserva, aqui no balanço de uma rede na varanda, conjecturando sobre a morte e suas causas. Tudo bem, confesso, às vezes essa imagem acaba sendo bem fiel.
Há algum tempo estou convencido de que toda pessoa morre duas vezes, com certo espaço entre as duas. A primeira quando ganha sepultura e epitáfio para chamar de seus e a segunda quando seu nome é citado entre os vivos pela última vez. Raras permanecem na memória por séculos, como Jesus Cristo, Maomé, Beethoven e Da Vinci. A maioria não sobrevive nem mesmo na lembrança de seus descendentes, amigos do peito ou credores.
Mas no balanço geral, contudo, existem circunstâncias que podem melhorar o resultado da última linha. O olhar amoroso e protetor de pais e avós e a contrapartida de afeto e reconhecimento de filhos e netos, por exemplo, têm o condão de alongar a memória e retardar o esquecimento.
O bom da velhice? Sei lá! Quem souber, me conte, por favor. Sei é que tenho um monte de casos para contar. Posso passar o resto da vida lembrando (e recriando, do meu jeito) o tanto que experimentei, mas viver só de lembranças é coisa de velho e ficar velho é uma merda! É tolerável apenas quando penso na única alternativa que existe e opto por ficar por aqui, divertindo-me e mexendo com quem presta atenção no que escrevo.
Enquanto somos lembrados, a memória respira, lateja. No jogo da vida, não existe morte súbita nem na prorrogação. Ou será que toda morte é súbita? Sei lá! Quem souber, me conte, por favor!
Como na canção Epitáfio, dos Titãs (ouça), contamos todos que o acaso nos proteja enquanto seguimos distraídos por aí.
*HAYTON ROCHA, escritor e blogueiro
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