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Redes sombrias
- Heraldo Palmeira
Quem tem pelo menos 40 anos de idade lembra bem do que significava fazer contato com alguém em outra cidade, estado ou país. Era um tempo em que falar com alguém distante só era possível utilizando os serviços de Discagem Direta a Distância (DDD) ou Discagem Direta Internacional (DDI) oferecidos pela telefonia a preços absurdos. Os serviços postais completavam o pacote de ofertas com cartas, telegramas e encomendas. Transmissão de imagens entre pessoas comuns ainda estava no mundo da ficção científica ou no desenho animado The Jetsons exibido na TV.
O avanço das tecnologias trouxe modificações definitivas para a humanidade, alterando e influenciando profundamente o comportamento das pessoas. O fenômeno das redes sociais inserido nesse pacote facilitou e barateou a comunicação em termos globais. Nesse novo mundo, surgiram as plataformas para operar a teia digital que empacotou o planeta. Em pouco tempo, essas empresas ganharam musculatura de gigantes, operando ferramentas e soluções oferecidas por cliques em dispositivos cada vez mais acessíveis e poderosos.
Hoje, esse admirável mundo novo é dominado de forma hegemônica pelas denominadas big techs, um conjunto de organizações contadas nos dedos de uma mão, que produzem ou distribuem conteúdos, muitas vezes as duas coisas. Chegamos a tal ponto de dependência que ninguém consegue mais imaginar a vida sem esses serviços digitais – o vício digital já é tratado no campo dos transtornos mentais e psicológicos; já são comuns programas de lazer que não incluem dispositivos eletrônicos.
O deslumbramento natural com tamanhas facilidades veio acompanhado da desatenção com limites e, a cada dia, o monstro mostra mais um pouco das próprias garras sem qualquer controle e sem que a sociedade tenha noção real do nível de monstruosidade disponível ou ainda a caminho.
Não bastasse o mistério profundo que cerca a deep web, onde toda sorte de aberração está disponível sem deixar pegadas ou possibilidade de qualquer acesso ou enfrentamento pelas autoridades, algumas de suas práticas terríveis começam a submergir para a camada mais comum, aquela que está nos dispositivos de todos os usuários e mira crianças, adolescentes e adultos incautos no conforto dos seus aposentos de isolamento social, onde supostamente estariam seguros.
Há poucos dias, o país foi sacudido por uma matéria jornalística (link abaixo) revelando como o aplicativo Discord tornou-se ferramenta para arrastar crianças e adolescentes até um submundo de violência extrema, a partir de desafios perversos. Ali, tornaram-se comuns cenas de jovens protagonizando mutilações, exposição sexual, crueldade contra animais, incentivo a ataques contra escolas, pedofilia, tudo isso veiculado ao vivo. Passo seguinte, os subjugados passam a sofrer chantagens, depois que os líderes desses grupos coletam os seus dados (nome verdadeiro, endereço etc.) e ameaçam contar tudo ao mundo real, a começar pelas famílias.
Perguntas óbvias: onde estão os pais ou responsáveis dessas crianças? Fingindo que são pais e responsáveis ao dividir a “educação” delas com as bugigangas digitais que entregam nos primeiros meses de vida? Não sentem culpa por entregar seus pirralhos a essa dominação digital para que fiquem “distraídos” e menos incômodos, ao invés de se darem ao trabalho de cumprir o papel que fingiram assumir ao conceber filhos? Só descobriram depois que isso dá um trabalho danado e é tarefa para adultos de verdade?
O Discord apareceu como a ponta de um iceberg imensurável, já que o mesmo conteúdo grotesco também tem circulado impunemente em outras plataformas como Twitter e TikTok. “A partir da entrada do smartphone, já existem pesquisas que mostram que esses aparelhos afetaram a adolescência. É como se falassem para as pessoas: ‘Olha, descobrimos o fogo. Brinca aí com fogo’. O fogo é maravilhoso, mas você tem que ensinar como é que mexe nisso, para não se queimar. A gente deu o fogo na mão das crianças e estamos vendo os resultados”, constata a psicanalista Vera Iaconelli.
Órgãos que recebem denúncias contra violações dos direitos humanos na internet também registram que o problema é grave e crescente. “A gente tem visto uma escalada não só do número de denúncias de violência, de conteúdo extremista na internet, mas também uma escalada do nível de crueldade, de sadismo desse conteúdo. A fiscalização e o controle disso são muito precários”, alerta Thiago Tavares, presidente da SaferNet Brasil.
Hoje, de acordo com o Marco Civil da Internet, as plataformas realizam, elas mesmas, a própria regulação e não são responsabilizadas pelo que veiculam. O típico caso de raposa cuidando de galinheiro. Somente sob ordem judicial estão obrigadas a retirar conteúdos perniciosos do ar.
Na semana passada, o aplicativo Telegram foi bloqueado no Brasil porque negou-se a apresentar à Justiça os dados relacionados a um ataque contra uma escola no Espírito Santo. Logo que a decisão do bloqueio foi suspensa, mesmo a Justiça mantendo uma multa diária de R$ 1 milhão enquanto as informações não forem devidamente apresentadas, a empresa festejou o desbloqueio afirmando que “os usuários brasileiros podem desfrutar novamente da sua liberdade de comunicação de forma segura”. Ao que parece, apologia ao crime e conteúdos ilícitos estão cada vez mais relativizados e aceitos como “liberdade de expressão”.
Soa preocupante que, mesmo diante de uma situação tão complexa de descontrole e de efeitos nocivos, muitas vezes devastadores, a discussão do PL 2.630 – a lei pretende estabelecer regras de regulação para as plataformas digitais – tenha sido contaminada por desconhecimento, má-fé e radicalismo político, a ponto de vermos regulação e censura transformados em sinônimos.
Como tem sido comum ao longo de anos, estamos vivendo mais um puxa-encolhe, mais uma disseminação das narrativas e fake news que costumam retirar de pauta qualquer discussão relevante para a sociedade. Algo que apenas confirma nossa triste devoção pelo atraso e sempre nos imobiliza à beira do caminho dos avanços, inclusive os civilizatórios.
Os interessados em manter seus domínios fora do alcance da regulação estão acionando seus lobbies, fazendo uma pressão descomunal sobre os legisladores. E agradecem penhorados a adesão de quem sequer se dá ao trabalho de entender o que está acontecendo, muitas vezes em suas próprias casas, nos quartos fechados das crianças e adolescentes da família.
Parece inteligente e urgente dotar de inteligência todas essas discussões de interesse público, entender que as propostas precisam ser discutidas e aperfeiçoadas sob a perspectiva do bem comum, algo que não tem nada a ver com posição política.
Não se assuste quando souber que os roteiristas de Hollywood acabaram de entrar em greve. Sim, a qualidade do que vemos nas plataformas vai cair bastante nos próximos meses porque muita porcaria será produzida para tapar buracos até que a situação normalize. A única certeza: esse movimento é consequência da falta de regulação, não tem nada a ver com defesa da censura. A lógica é bastante simples: as grandes empresas pagam cada vez menos pela criação dos roteiros – o valor caiu cerca de 50% desde 2008 – e algumas prometem aos autores participação nos resultados comerciais da obra. Mantêm o produto anos a fio em exibição, mas guardam segredo absoluto sobre os números de audiência e do faturamento que geraria o cálculo da participação autoral dos criadores.
Felizmente, o debate tem crescido bastante e ganhou proporções mundiais, o que poderá terminar levando ao estabelecimento de um arcabouço jurídico capaz de conter esse vale-tudo, que também atenda a interesses nacionais e internacionais de proteção da sociedade.
Em linhas gerais, as discussões trouxeram à tona o desejo de que as plataformas digitais mantenham regras transparentes de moderação e dos algoritmos, previnam e combatam práticas ilícitas em seus ambientes, respondam solidariamente por conteúdos cuja veiculação tenha sido impulsionada por pagamento e estabeleçam remuneração autoral – mesmo de forma precária, o reconhecimento de direitos de autor já está em prática em alguns países.
O que os radicais da política temem é que, estabelecida legalmente a responsabilidade solidária das plataformas, a divulgação massiva de narrativas e fake news que costumam contratar estará com os dias contados. É aí que mora o pânico, é a isso que resolveram chamar de “censura”. Para não perder o costume, inundaram as redes sociais de fake news para tentar substituir fatos por narrativas.
As gigantes digitais adoraram a palavra “censura” transformada em mantra e trabalham para que tudo permaneça exatamente como está. Nada melhor do que continuarem faturando os tubos com impulsionamentos contratados sem qualquer responsabilidade com os conteúdos, seguirem sonegando números que orientem o pagamento de direitos autorais de forma adequada e manterem os pervertidos à vontade para destruir impiedosamente vidinhas que sequer começaram. Admirável mundo novo!
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