Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

Tramas de meninos

Divulgação/Alfaguara

Tramas de meninos

  • Márcia Lígia Guidin

GIRAMUNDO LEU Em linguagem sempre poética, este novo livro de contos de João Carrascoza realimenta seus principais temas: os afetos e a família nas miudezas do cotidiano, amores e perdas, com acréscimo, agora, de reflexões sobre a velhice na figura do pai que, incansável, espera a visita do filho.

Novos rumos nos laços de família

João Carrascoza, paulista de Cravinhos (SP), ao contrário da prosa de redator publicitário feroz, traz uma linguagem altamente lírica em todas suas obras de ficção. Não deixa de ser curioso avistar o suposto paradoxo com que o ficcionista nos carrega para dentro da escrita poética. Ao contrário da persuasão arrojada e pouco dissimulada em outros escritores ligados a mídias e à publicidade, Carrascoza nos oferece mão suave sobre camadas e camadas de metáforas para seguirmos junto com seus protagonistas. De modo geral, as miudezas observadas na rotina acontecem no âmbito interno, aquém das janelas das casas e aqui não é diferente.

Em Tramas de meninos, quatorze contos dialogam entre si. E trazem à memória um dos melhores livros do autor: Aquela água toda, lindamente publicado pela Cosac Naify, em 2012. Neste premiadíssimo volume, o autor trouxe sobretudo a voz da “inexperiência” adolescente e urbana das classe mais simples. Aquela água toda (título da obra) são as lágrimas de alívio do menino pobre, ao reencontrar a família da qual se perdera numa desejadíssima excursão ao mar.

Em Tramas de Meninos, as relações afetivas retornam ao âmbito semirrural, da cidadezinha pequena e das casas com varanda. Capricho do contista, o primeiro e último conto se fecham para o leitor, como um leque: no primeiro (Começo), o pai derrama a saudade em primeira pessoa, quando, ao fim de domingo, o filho visitante já se prepara para voltar à cidade grande onde vive.

“Era naquela hora que começava. Eu sentia. Meio da tarde, domingo. Às vezes tínhamos ainda algum tempo para gastar juntos, quando então eu fazia um café (…) Mas era domingo, meio da tarde, e ela começava: a saudade. (…) Era naquela hora que começava: com ele ainda aqui, na sala, diante dos meus olhos.”

O pai é idoso a quem cabe esperar a visita do filho. Neste belo conto, Carrascoza começa a debruçar-se sobre a análise da velhice. Em textos e romances anteriores não me lembro de ler reflexões demoradas sobre a solidão da velhice como leio aqui. As relações domésticas anteriores, familiares, amorosas, mesmo olhando para avós, não se detinham na triste imobilidade das gerações mais longevas. Avançar em tal temática, creio, fará muito bem à sua narrativa, agora e no futuro.

“Era assim, ele – já um homem –, vivendo na capital, vinha me visitar de tempos em tempos, seguindo as datas de um calendário que só existia entre nós.”

Dois contos

A este estado da velhice, marcado por missão paterna cumprida, e que apenas tolera o afastamento do filho, se associa com grande precisão o último conto da obra (Últimas), que conta a mesma história. Ou seja, o autor insiste no inevitável correr da vida (a rigor o tempo que passa), em modos de observação do que une, mas também desune pai e filho.

Carrascoza é ainda mais zeloso em cada linha do último conto. Recria o amor, a expectativa pela chegada do filho varão e a revelação da saudade. A vida do velho pai expectante ganha, agora, variação do ponto de vista: em vez de manter a primeira pessoa, este último conto está narrado em terceira pessoa onisciente. É como se, para a mesma perturbadora história, o narrador registrasse a experiência do adeus – mas, agora, através da onisciência formal, se permitisse análise mais abrangente da relação entre pai e filho através da vida que passa.

Nestas duas histórias (que estão entre as melhores do livro), a figura da mãe é ausente. Cabe apenas aos dois varões, ao patriarca e ao sucessor, tentar uma relação afetiva sem conturbações, mesmo em “estações distintas da vida”. Os contos têm algo de A terceira margem do Rio, de Guimarães Rosa, um dos autores preferidos de Carrascoza. Lá o filho assume o alimento diário do pai que navega no rio; aqui o filho alimenta, de tanto em tanto, os encontros que minimizam a saudade do pai.

“Mas embora vivessem longe um do outro, e com os pés em estações distintas da vida, falavam-se sempre ao telefone.

– Liguei só para avisar, estou indo pra te ver – e o pai, sem que fosse preciso perguntar, “quando?”, saboreou, com gosto, o melhor da notícia.

– Quando?

– Agora. (p. 113)

(…) Desligou o telefone e sorriu, só para si. O dia, dali em diante, seria outro, maior.”

Creio que com esta velhice em andamento, rebatida em dois contos no mesmo livro, o autor (agora aos 60 anos), começa a se postar diante do tempo que passa para todos. Se há em sua obra um alta e inescapável vibração autoficcional, agora talvez seja a hora de avançar os sinais existenciais que levam à velhice como preparação para a morte.

Outros contos ganham destaque no pequeno volume, como Quem?, no qual, após um passeio de tarde de domingo, o pai, o tio, a irmã e o filho do protagonista (sob monólogo interior) seguem para um passeio de carro. Após grave acidente, este, a quem é dada a notícia ainda incompleta, não consegue saber qual dos membros da família perdeu a vida. Um a um, os feridos são reconstruídos na imaginação sob a pauta do medo da perda. No andamento dessa memória, a nenhum deles é dada a permissão para a morte… até se saber qual deles de fato perdeu a vida.

Em outro conto bem incômodo (Os dois), o autor mostra que tem fôlego para o sombrio, para a tristeza e para as tragédias familiares de todos os dias (a maioria delas no âmbito secreto da sala e do quarto). Soa muito grave o relato do filho caçula, que conta, pesaroso, as brigas, gritos ou surras entre mãe e pai – como os atos de violência indiferentes à presença dos filhos. Aos quatro irmãos, torturados pela insegurança de todas as horas, cabe esperar as pazes ou a violência, carícias ou gritos. Quantos filhos vivem isto? E como o escritor bem sabe fazer, aqui, sob vigor e delicadeza, traz essa análise como catarse do filho, hoje homem, que redemoinhava nesse amor conjugal tão doente:

“O pai dormiu duas noites no sofá. Mas na terceira, quando assistíamos à novela, os dois já se sorriam; e se por um lado esses sorrisos reduziram a minha aflição, por outro me doeram como ofensa.”

João Carrascoza traz com mais esta obra – pouco extensa como as anteriores – a confirmação de seus temas e de seu inconfundível lirismo na construção da frase. Nem sempre tudo acaba bem; nem sempre o amor supera a vida sufocante. Creio que esta obra, exceto dois ou três contos menos envolventes, esteja destinada a um bom lugar entre o que o autor já escreveu de melhor, Caderno de um ausente e Aquela água toda – infelizmente utilizado para um público juvenil, o que desmerece sua importância numa literatura tão detalhista. Ou seja, duvido que o professor que pouco lê consiga capturar a simbologia tão cuidada do escritor.

A despeito de algumas aferições injustas das obras de João Carrascoza, como perto do piegas, do kitsch, seus textos avançam do núcleo familiar para questões existenciais cruciais. Felizmente, a premiada literatura de Carrascoza tem encontrado seu lugar junto a nós, leitores que também apreciamos, por exemplo, A desumanização, de Valter Hugo Mãe, ou Leite derramado, de Chico Buarque, ou mesmo a sinceridade ficcional de Mário de Andrade. Esta prosa poética que vem nos dizer como é o mundo, oferece esperança em apuro estético quase cirúrgico. Afinal, por traz dessa delicadeza, quantas camadas existenciais foram e são sutilmente enfrentadas, pelo autor e por seus leitores. Vida literária longa ao autor paulista.

*MÁRCIA LÍGIA GUIDIN, editora e crítica literária

(Publicado no Rascunho)

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