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Trocando em miúdos
- Hayton Rocha
Celebrou-se em Portugal, na semana passada, o aniversário de 49 anos da Revolução dos Cravos, revolta pacífica que pôs fim ao Salazarismo – governo de inspiração fascista instalado desde os anos 1930, uma das mais duradouras ditaduras da Europa.
Coincidiu com um momento marcante na vida de Chico Buarque, autor da mais célebre canção brasileira sobre aquele evento histórico, Tanto Mar. Quatro anos depois do seu anúncio como vencedor do Prêmio Camões, principal honraria literária da língua portuguesa, Chico pôde finalmente recebê-lo no Palácio Nacional de Queluz, em Sintra, a meia hora de Lisboa.
O Prêmio Camões foi criado há 35 anos pelos governos de Brasil e Portugal e é escolhido por um júri composto por dois brasileiros, dois portugueses e dois representantes dos demais países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Já premiou nomes como João Cabral de Melo Neto, Jorge Amado, José Saramago, Lygia Fagundes Telles, Mia Couto, Rachel de Queiroz e Rubem Fonseca, dentre outros.
Voltei no tempo, aos meus 10 anos, mais precisamente a 1968. Apareceu na radiola lá de casa um compacto simples – pequeno disco de vinil com apenas duas músicas: de um lado, Bom Tempo; de outro, Ela Desatinou – de um cantor e compositor desconhecido para mim.
Meu pai falava de canções mais interessantes do que aquelas dos cabeludos da jovem guarda. Tive dúvidas. Eu já começara a escutar no rádio Eu Sou Terrível, Por Isso Corro Demais, De que Vale Tudo Isso?, todas incluídas no mesmo LP Roberto Carlos em Ritmo de Aventura, de Roberto Carlos. Mas ouvi um bom conselho e nunca mais deixei de prestar atenção no que fazia Chico.
Cresci admirando as múltiplas facetas do maior cronista-poeta musical de seu tempo. Tanto mar depois, embora Chico seja reconhecido em várias partes do mundo pelo conjunto de sua obra como cantor, compositor e escritor, com centenas de canções, cinco livros e tantas outras criações artísticas, alguns brasileiros o apedrejam nas ruas, nos bares e nas redes sociais, com a mesma intolerância e ingratidão com que se tratou Geni, a do zepelim.
Lembra as pedras lançadas sobre Pelé, nos anos 1970, porque não usava de seu prestígio para denunciar torturas que aconteciam numa certa nação do faz de conta. Foi apedrejado inclusive porque teria dito que seus conterrâneos não estavam preparados para votar. Ironicamente, desde lá, quem é derrotado nas eleições dá razão a Pelé.
Nos anos 1980, João Saldanha, um dos mais respeitados jornalistas esportivos, ao opinar sobre a decisão do então treinador da Seleção, Telê Santana, de excluir do grupo o atacante Renato Gaúcho – o jogador caíra na esbórnia às vésperas da viagem para a Copa do Mundo –, foi taxativo: “Eu não preciso dele pra casar-se com a minha filha, mas pra jogar futebol. E esse cara joga pra burro!”.
Chico é pelé (cai bem o novo verbete incorporado ao dicionário Michaelis!) no que faz. Mas, como Saldanha, não preciso dele para ser meu genro, pai de meus netos. Nem tenho interesse em suas preferências futebolísticas, políticas, religiosas ou sexuais.
Meus netos, sim, precisam ouvir antigas estórias de um país do faz de conta de casas simples, com cadeiras na calçada, em que na fachada estava escrito que era um lar. Ali morava uma criança que, mesmo sem ter fé, pedia a Deus por sua gente, gente tão humilde que dava vontade de chorar.
Com o tempo, essa criança foi vista chegando suada e veloz do batente, trazendo um presente para encabular seu pai. Eram tantas correntes de ouro que faltava pescoço para enfiar. Trouxera até uma bolsa com tudo dentro: chave, caderneta, terço, patuá, lenço e uma penca de documentos pra finalmente o pai se identificar.
Criança que cresceu desiludida com o futuro da nação do faz de conta. Um dia, bebeu e soluçou como se fosse um náufrago, dançou e gargalhou como se ouvisse música e acabou no céu como se fosse um pássaro. Restou a seu pai uma saudade que dói mais que o revés de um parto ou arrumar o quarto de um filho que morreu.
Chico, assim como você e eu e qualquer um, tem o direito de fazer o que bem quiser da própria vida, inclusive de vestir a camisa que lhe pareça mais bonita e confortável. Ainda que as tribos que racham a nação do faz de conta só falem a mesma língua num ponto: ou se está com elas ou contra elas. Não têm adversários, têm inimigos. Não discordam. Agridem, cancelam.
Em tempos de indigência cultural, com tantas obras descartáveis despejadas sobre nós, essas tribos insistem nesse espetáculo dantesco de “olho por olho, dente por dente” que transforma a nação do faz de conta num sanatório geral de banguelas e caolhos.
Trocando em miúdos, estou vendo a hora Chico pedir para deixarem em paz o seu coração – hoje, um pote até aqui de mágoa! –, apagar a luz, bater o portão sem fazer alarde e sumir no mundo sem nos avisar. E aquela esperança de tudo se ajeitar… Pode esquecer.
*Hayton Rocha, escritor e blogueiro
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