Por Heraldo Palmeira
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2 de abril de 2025

HERALDO PALMEIRA Tudo que é bom…

Chulmin1700/Pixabay

Tudo que é bom…

  • Heraldo Palmeira

Tudo que é bom nunca morre, apenas adormece na saudade e, em muitos casos, pode acordar com forças renovadas. O Carnaval pode nos dar algumas pistas a respeito porque, nas últimas décadas, a folia de Momo se perdeu num mar de lixo musical e desviou seu tom cultural priorizando a sexualização – em boa medida reforçada pela música recheada de obscenidades faladas e gestuais. Não é uma questão de moralismo, apenas o registro de um exagero que, em dadas proporções, vestiu uma fantasia apelativa demais, ficou chata e terminou “carimbando” diversos destinos onde a festa é destaque na vida socioeconômica local.

É um fenômeno que parece ter se instalado nos desfiles oficiais – a partir do Sambódromo carioca e similares copiados em outras cidades, além dos blocos ensimesmados em abadás e cordas. Essas festas, com ampla cobertura midiática, foram se tornando cada vez mais insossas e caíram nos braços da indústria do turismo, que não demorou a criar fantasias para turistas endinheirados sem samba no pé. No caso carioca, felizmente resta um foco de resistência impossível de ser dobrado: a força das comunidades que trazem no samba sua própria identidade cultural, que têm nas escolas de samba sua revelação mais esplendorosa.

Mas há o outro lado dessa moeda: tudo é cíclico. O fogo ardente se torna brasa e termina em cinza. Tudo que vira mais do mesmo um dia perde a utilidade quando todo mundo cansa daquilo. Uma espécie de morte anunciada, mas todo mundo bebeu demais para reagir e tentar salvar o moribundo.

Ora, ora! O Carnaval é uma festa popular que nasceu com o pé no chão e organizado por quem mais chegasse. Livre, leve e solto, dispensando enredos enfadonhos e cheios de pretensão acadêmica. Por isso, é provável que as “pipocas” tenham sido o primeiro grito de libertação para devolver a fuzarca a quem de direito.

De repente, os blocos de rua ressurgiram nas cidades mais carnavalescas do país arrastando multidões e fazendo a festa do jeito que todo mundo gosta: sem truculentos posando de donos, sem carnavalescos, sem cordas, sem abadás, sem repertórios musicais obrigatoriamente ultrajantes e tendo a alegria como único enredo. Claro, com a crítica de costumes fazendo graça sem livrar a cara de ninguém.

Há quem diga que esse movimento popular renovado também está virando uma indústria, dado o porte cada vez maior dos blocos que hoje desfilam nas principais cidades brasileiras. Rio de Janeiro, Recife e Olinda apenas mantêm uma tradição que nunca abandonou seus fevereiros e marços. E São Paulo, sempre contido naquelas emoções meio elitistas, desceu do salto e tem hoje o que já pode ser considerado o maior Carnaval de rua do país. Em todos esses lugares, a festa se espalha antes, durante e depois dos quatro dias de folia.

E foi na Pauliceia Desvairada que o bloco carnavalesco Explode Coração homenageou Maria Bethânia e levou 150 mil foliões à região central de São Paulo neste 2025. O centro do repertório era o álbum As Canções que Você Fez pra Mim (lançado em 1993, link abaixo), onde a cantora interpreta canções de Roberto e Erasmo Carlos. “Esse bloco é para namorar, se divertir, brincar Carnaval”, afirmou Bethânia com um sorrisão cúmplice de quem está na crista da onda desde sempre.

Esse bloco paulistano é um ótimo registro do papel fundamental que um renovado Carnaval de rua tem desempenhado no cenário cultural. Além do resgate do verdadeiro espírito da festa em si, onde grupos de amigos vão juntando gente, a trilha sonora tem se valido de uma música de alto nível para engrossar o frevo e o samba das melhores estirpes.

É um ótimo sinal ver Rio de Janeiro, Recife, Olinda e agora São Paulo com multidões nas ruas dançando, cantando nosso melhor repertório e sendo feliz. Quem sabe, daqui a algum tempo, nossos ouvidos estarão livres da predominância de porcarias sonoras que viraram rotina em festas, reuniões, casas, ruas, carros, estabelecimentos comerciais, rádio, televisão… Uma onda de baixarias que roubou das novas gerações o direito de produzir e usufruir o belo da arte. Que essa gente tenha a esperteza de recuperar o tempo que perdeu querendo reinventar quase tudo.

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

Ouça aqui

As Canções que Você Fez pra Mim   https://open.spotify.com/intl-pt/album/0mTRjtWGKiGmfEDmzcpII6?si=XcX1kvjVSImT1BZP7pMlXQ

 

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