Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

Uma noite eterna

Divulgação/Netflix

Uma noite eterna

  • Heraldo Palmeira

GIRAMUNDO VIU Sim, há mesmo noites eternas. Como foi aquela da segunda-feira 28 de janeiro de 1985, em Los Angeles (EUA). Algo envolvente e autêntico que varou a madrugada, acabou às 8h da manhã seguinte e segue como retrato de uma época inesquecível. Uma noite eterna que registrou uma das pouquíssimas vezes em que o mundo parou por causa da música.

Passados 39 anos desde que o mundo ouviu pela primeira vez, deslumbrado, a música We Are The World, a Netflix lança o documentário A Noite que Mudou o Pop do premiado diretor vietnamita-americano Bao Nguyen, mostrando os bastidores da gravação de um dos maiores hits da história, com a participação de estrelas de primeira grandeza da música norte-americana, algo que marcou para sempre a história da cultura pop.

O filme começa contextualizando o ambiente musical de 1984, e transcorre numa mescla de entrevistas atuais e imagens de arquivo para mostrar o processo monumental de juntar artistas com agendas superlotadas em uma época em que não havia celulares ou e-mails. Tudo isso diante de um prazo apertadíssimo (uma noite apenas para gravar a música e o videoclipe de divulgação). Sem contar que a notícia não podia vazar para evitar uma multidão no local da produção, que certamente colocaria tudo a perder – gente como Bob Dylan, Ray Charles, Stevie Wonder e Michael Jackson daria meia-volta ao menor sinal de estranhos rondando.

No fim, o documentário deixa no ar o doce prazer de uma atmosfera leve e nostálgica que encanta qualquer pessoa interessada em música, além de uma quantidade imensa de informações a respeito de um gesto magnânimo de pessoas muito famosas que poderiam apenas seguir cuidando de suas vidas, mas resolveram sacudir o mundo motivados pelo espírito humanitário em favor de uma causa nobre.

O projeto teve início muito antes, quando o cantor e ator Harry Belafonte, que havia se tornado uma personalidade lendária da cultura norte-americana, grande divulgador da música caribenha no mainstream e militante de causas sociais resolveu agir para arrecadar fundos e ajudar a combater a fome e as doenças na África.

Ele achava que a pobreza, principalmente na África, precisava ser discutida. E as imagens chocantes que chegavam da Etiópia mostrando pessoas morrendo de fome foi um poderoso catalisador. “Uma criança faminta morre silenciosamente. Na África, morrem aos milhares. Como encarar essa força avassaladora de necessidade e fome? Algo deve ser feito […] Vemos brancos salvando negros, mas não vemos negros salvando negros. Precisamos salvar o nosso povo da fome”.

Assim surgiu a USA (United Support of Artists) for Africa Foundation, que juntou os maiores nomes da música norte-americana para gravar uma canção em favor de populações africanas em situação de grave risco social e cuidou da posterior distribuição dos recursos arrecadados. “Artistas têm uma função valiosa em qualquer modelo de sociedade, já que são os artistas que revelam a sociedade a si mesma”, exaltou Belafonte.

Inspirado no projeto londrino Live Aid produzido pelo cantor irlandês Bob Geldorf, Belafonte procurou seu amigo Ken Kragen, um dos maiores empresários de artistas dos EUA – que topou na hora e assumiu toda a parte logística.

Kragen ligou para seu representado Lionel Richie enfático: “Harry Belafonte está lhe procurando”. Richie ligou imediatamente e ouviu a voz suave, rouca e mitológica do outro lado da linha: “Gente preta morrendo, Lionel…eu preciso de gente preta para salvá-los!”. E assim tudo começou. Na verdade, Belafonte imaginou um projeto só com artistas negros, mas seu coração superlativo não criou qualquer resistência quando o empresário argumentou que aquela ação espetacular deveria ser de todas as raças para conquistar todos os públicos.

Depois de Lionel, Kragen acionou Kenny Rogers, outro artista que representava, que aderiu de imediato. Lionel acionou Stevie Wonder para ajudá-lo a criar a música e convidou o maestro e produtor Quincy Jones para comandar o projeto, que chamou Michael Jackson – acabou parceiro de Lionel na composição, pois Stevie não retornou as ligações em tempo hábil – e o engenheiro de gravação Humberto Gatica, um dos mais premiados do mundo.

A escolha do maestro e produtor não poderia ter sido mais feliz. “Não havia nome melhor, Quincy Jones tinha o respeito de todos os artistas do planeta”, atesta Lionel Richie. A partir daí, a constelação foi se formando sem grande dificuldade para criar o que viria a ser o maior disco beneficente da História. Para driblar o problema das agendas de tantas estrelas que não paravam de dizer “sim” ao convite irrecusável, a produção decidiu aproveitar o American Music Awards que se aproximava. Afinal, naquela noite quase todos os artistas convidados para a gravação estariam antes no Shrine Auditorium participando da solenidade de entrega dos prêmios, que seria apresentada por Lionel Richie.

Na outra ponta, Quincy começou a colocar pressão nos dois compositores pois a corrida contra o relógio tinha começado e chegara a limites perigosos. Até que Michael sussurrou com o timbre famoso: “Meu Deus, Lionel, vai acontecer semana que vem”.

A gravação da fita demo foi realizada por Lionel, Michael, Stevie e Quincy em Beverly Hills, no Lion Share (estúdio de Kenny Rogers), e encaminhada para todos os convidados. Enquanto isso, Lionel recebeu em casa Quincy e o produtor musical e arranjador vocal Tom Bahler, para definir os tons, quem cantaria os solos, quem sucederia quem, as vozes que combinavam juntas para formar duplas e trios e o local que ocupariam fisicamente no estúdio. Já tinham em mente a decisão corretíssima – de Quincy – de que a gravação se daria numa única sala, com todos os artistas juntos. “Vamos formar um círculo com todos os microfones, e vocês cantam olhando uns para os outros”, fechou questão o maestro comandante do projeto.

Prince parece ter sido o único super astro que perdeu o bonde porque embarcou na vaidade, talvez embalado pelo sucesso de Purple Rain. Ocupado numa rivalidade boba que criou com Michael Jackson pelo trono do pop, recusou os diversos convites para participar. Em determinado momento, de forma egocêntrica e totalmente distante do espírito da coisa, se ofereceu para gravar uma guitarra em sala separada de todos, proposta gentilmente recusada.

Não dava para esperar nada muito diferente de um cara que, todas as vezes que subiu ao palco na premiação daquela noite, se fez acompanhar de um imenso guarda-costas vestido de camiseta regata numa noite de gala, diante de uma plateia de celebridades que dificilmente o atacariam por qualquer motivo.

Depois de sair do American Music Awards foi visto num restaurante mexicano não muito distante do estúdio onde tudo aconteceu, talvez convencido de que haveria alguma peregrinação de estrelas para levá-lo triunfal à sala de gravação. Deve ter percebido depois que não fez falta e perdeu a chance de um dueto com o verdadeiro Rei do Pop – o último convite foi feito ainda no Shrine Auditorium pelo próprio Lionel Richie. Talvez Prince não tenha alcançado o significado que teria para a campanha sua presença ao lado de Michael Jackson.

A parte que lhe caberia no latifúndio acabou brilhantemente ocupada por Huey Lewis – que canta de forma comovente uma “ponte” com Michael e, no trecho seguinte, forma um trio encantador com Cyndi Lauper e Kim Carnes. “Conhecendo ele, não era bem o estilo dele… na época, ele não era uma pessoa muito sociável. Ele era o Prince. O próximo detalhe é o rival dele, Michael. Você quer acabar com a rivalidade se juntando a um grupo de pessoas cantando uma música, com o seu rival bem ao seu lado? É claro que não!”, comentou Lionel Richie em entrevista recente à revista The Hollywood Reporter.

A estrutura do estúdio foi melhorada para acolher a gravação da parte de imagens do videoclipe. Esse trabalho ficou a cargo do lendário designer de luz Bob Dickinson, que conseguiu o equipamento gratuitamente com seus amigos da indústria, mesmo sem dizer o nome dos envolvidos. A causa já era mais do que suficiente.

No dia da gravação, alguns artistas estavam longe de Los Angeles. Stevie Wonder em Filadélfia. Dionne Warwick em Las Vegas. Bruce Springsteen em Buffalo, onde nevava muito e os voos poderiam ser suspensos. “Eu não sabia nada sobre o projeto até pousar em Los Angeles. Quincy é importante para muitos. Vale a pena participar de qualquer projeto que ele faça”, assinou embaixo – em letras garrafais – a diva Warwick.

No local da premiação, Lionel Richie conduzia o evento e soltava pistas cifradas como “Nada mais será o mesmo depois da noite de hoje”. E ainda foi vencedor em seis categorias.

No estúdio, o cinegrafista Ken Woo recebeu uma missão do produtor: “Fique na rua, já vão começar a chegar”. E Woo relembra: “A questão era: quem ia chegar?”, até hoje perplexo com o desfile de celebridades que se seguiu. Ele ficou especialmente impressionado quando um cara estacionou um velho Pontiac GTO do outro lado da rua. Era Bruce Springsteen sendo ele mesmo para variar.

Pouco antes das 22h as estrelas começaram a chegar ao lendário Henson Studios – propriedade da A&M Records. Quincy Jones, o general convocado para comandar aquela banda inacreditável, colocou à porta do estúdio uma frase lapidar que escreveu num pedaço de papel: “Deixe seu ego na porta”. Lá dentro, trabalhando nas bases da música desde cedo com Quincy, músicos e técnicos estava um certo Michael Jackson. Usava um lendário AKG C12, um dos mais famosos microfones de tubo da história das gravações fonográficas pelo seu som fantástico e único. “Eu estava ajustando as luzes, enquanto o Michael Jackson escutava a música. De repente, ele começa a cantar. Foi a voz mais incrível que já ouvi na vida”, derrete-se Bob Dickinson.

A partir dali, foi se mostrando mais uma vez a razão de Quincy Jones ser chamado de “o mestre do caos”. Afinal, além de tudo que lhe cabia, ainda havia a administração da energia criativa de 45 artistas muito famosos numa mesma sala. Outra decisão acertada, nenhum artista poderia levar assistentes, o que teria amplificado o caos. “Esta é a única sessão no mundo em que você não vai perguntar ‘O que vocês acham?’. Você tem um cômodo lotado de criativos. Você vai ter 20 arranjos diferentes de We Are The World. Você não vai perguntar ao Bob Dylan, ao Bruce, ao Steve Perry, ao Michael o que eles acham. Não questiona ninguém”, acertou na mosca o tarimbadíssimo Quincy Jones.

Mesmo assim, é possível ver alguns conflitos de personalidade e a intenção de Michael e Stevie imporem ideias contestadas com veemência por alguns colegas de estrelato. Também há momentos cômicos impagáveis, como a gravação sendo interrompida até que finalmente se descobrisse que uns ruídos misteriosos eram provocados pelos incontáveis adereços – colares, pulseiras e brincos – de Cyndi Lauper. Ou quando Ray Charles disse que precisava ir ao banheiro, Stevie Wonder se prontificou imediatamente a levar o amigo e os dois saíram de braços dados pelo estúdio, provocando uma gargalhada geral. Nenhum espaço para qualquer vitimismo tão ao gosto dos discursos politicamente corretos.

O talento descomunal de Stevie foi uma espécie de porto seguro musical durante a gravação, ajudando nos arranjos, definindo vocalizações e, mais impressionante, utilizando sua famosa capacidade de imitar todo mundo para ensinar a Bob Dylan – que havia pedido sua ajuda e era certamente o mais deslocado de todos naquela farra – como fazer a própria participação. Imitando a voz e jeito de cantar de Dylan, garantiu mais um momento de grande descontração no ambiente.

Certas grandezas são inexplicáveis. Harry Belafonte, o mentor de tudo aquilo, sequer cantou um trecho solo da música. Ficou serenamente na última fila do grande vocal. E terminou merecendo uma homenagem comovente durante a gravação, quando Al Jarreau puxou Day-O (Banana Boat Song), canção com elementos do folclore da Jamaica (link abaixo) – onde Belafonte viveu na infância –, que foi um dos maiores sucessos de sua carreira musical.

Se você conseguir segurar a emoção assistindo o documentário, não vai ser tarefa fácil quando chegar a hora do dueto entre Stevie Wonder e “The Boss” Bruce Springsteen, culminando com Ray Charles encaminhando o final da música. Não pense que o choro terá sido exclusividade sua. Diana Ross chorou primeiro do que nós, quando ficou sozinha no estúdio – foi a última estrela a ir embora, nos primeiros raios da manhã. Estava desolada porque aquela noite eterna havia terminado.

Na verdade, se emocionar vendo o documentário A Noite que Mudou o Pop será uma reação normal diante de um momento único. Talvez exista uma explicação bem simples. Enquanto temos aí fora um mundo árido e que mete tanto medo, aquelas imagens mostram que o mesmo mundo já era amedrontador há 39 anos, mas havia uma diferença: nós éramos capazes de fazer algo verdadeiro pelos esquecidos desse mesmo mundo – estrelas, produtores, músicos acompanhantes e técnicos participaram voluntariamente. Hoje, falta-nos gente como aquela que aparece no vídeo. É desolador!

Perguntado se seria possível fazer algo semelhante em 2024, Lionel Richie é definitivo: “O que fez We Are The World tão fantástico foi que nós pegamos o mundo de surpresa. Saiu rápido. Era uma época em que dava para surpreender alguém. Agora as pessoas estão cansadas. Estão mais interessadas em fazer delas mesmas famosas do que acompanhar algum famoso […] O jeito que eu vejo hoje é: se fizéssemos isso hoje, poderíamos fazer entre 1 e 7 da manhã logo após uma premiação? Não. Outra coisa, liste para mim um artista por verso, e me diga quem está cantando. Um verso, meio verso. Me diga quem é hoje. As vozes eram diferentes umas das outras”.

Pena que não foi ouvido no documentário o “premonitório” então namorado de Cyndi Lauper, já que, nos bastidores do American Music Awards, a moça assustou Lionel Richie: “Meu namorado ouviu a música. Vou ter que cancelar, ele não acha que vai fazer sucesso”. O sujeito ouvira a fita demo e sequer foi capaz de reconhecer as vozes de Lionel Richie, Michael Jackson e Stevie Wonder. No documentário, Cyndi tenta explicar depois de todos esses anos: “É que ninguém sabia. Era um grupo de pessoas talentosas, mas eu estava exausta. Eu ainda teria que cantar depois daquela premiação”. Talvez nem soubesse que alguém preferiu que fosse ela ao invés de Madonna naquela constelação. Oxalá o ex-namorado tenha deixado o mundo da música em paz.

No fim, o que parecia um grande caos virou magia e gerou um dos singles de maior venda em todos os tempos (20 milhões de cópias numa época em que era preciso sair de casa e ir até uma loja para comprar o disco). We Are The World arrecadou US$ 80 milhões (R$ 393,6 milhões), atualmente equivalentes a US$ 160 milhões (R$ 787,2 milhões). O projeto continua ativo e inspirou outras iniciativas similares em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil. Todos os artistas e técnicos participaram gratuitamente e esse trabalho voluntário acabou colocando seus nomes de forma eterna na história da música.

O lançamento ocorreu em 7 de março de 1985, por meio de uma cadeia mundial de emissoras de rádio e televisão como nunca se fez. Num mesmo instante, o planeta viu e ouviu boquiaberto We Are The World. Estavam ali, juntas numa sala, 45 lendas da música norte-americana (veja lista abaixo) assinando um dos maiores momentos da história da indústria do entretenimento em todos os tempos. Uma noite eterna. O Brasil esteve representado no grupo de instrumentistas (veja lista abaixo), com o percussionista Paulinho da Costa. Let’s all chant!

Veja aqui

We Are The World   https://www.youtube.com/watch?v=_cDNhqNv2HY

Day-O (Banana Boat Song)   https://www.youtube.com/watch?v=9sVSuxw9qZg&t=1s

Participantes da gravação

Solistas Al Jarreau, Billy Joel, Bob Dylan, Bruce Springsteen, Cyndi Lauper, Daryl Hall, Diana Ross, Dionne Warwick, Huey Lewis, James Ingram, Kenny Loggins, Kenny Rogers, Kim Carnes, Lionel Richie, Michael Jackson, Paul Simon, Ray Charles, Steve Perry, Stevie Wonder, Tina Turner e Willie Nelson.

Vocalistas Bette Midler, Bill Gibson, Bob Geldorf, Chris Hayes, Dan Aykoyd, Harry Belafonte, Jackie Jackson, Jeffrey Osborne, John Oates, Johnny Colla, LaToya Jackson, Lindsay Buckingham, Mario Cipollina, Marlon Jackson, Quincy Jones, Randy Jackson, Sheila E., Sean Hopper, Smokey Robinson, The Pointer Sisters (Anita, June e Ruth), Tito Jackson e Waylon Jennings.

Instrumentistas Greg Phillinganes (teclados), John Robinson (bateria), Louis Johnson (baixo), Michael Boddicker (sintetizadores e programação), Michael Omartian (teclados) e Paulinho da Costa (percussão).

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