Por Heraldo Palmeira
Los Angeles
Nova York
São Paulo
Lisboa
Londres
Fase da Lua
.
.
7 de novembro de 2024

Vai O Pasquim aí?

O Pasquim (Capa edição 1)/Reprodução

Vai O Pasquim aí?

  • Heraldo Palmeira

A Biblioteca Nacional tem em seu acervo um presentaço para a melhor memória brasileira. Estão lá, devidamente digitalizadas, as 1.072 edições do jornal O Pasquim publicadas de 26 de junho de 1969 a 11 de novembro de 1991. A primeira edição saiu com temerários 28 mil exemplares e no auge da circulação fala-se em até 250 mil.

O jornal foi idealizado para circular semanalmente em Ipanema, Rio de Janeiro, mas não demorou a se espalhar pelo país inteiro. O conteúdo inteligente e crítico e a diversidade de assuntos – amenidades, cinema, cotidiano, divórcio, drogas, feminismo, futebol, humor, música, sexo, teatro e o escambau – tratados com linguagem sem rodeios era seu grande trunfo editorial.

O Pasquim ensinou ao Brasil expressões que se eternizaram, como “duca” e “putz”, reduções deliciosas e publicáveis para “do caralho” e “puta que o pariu”.

O projeto de preservação digital teve início em 2019, com o apoio decisivo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e do cartunista Ziraldo Alves Pinto, que cederam exemplares para completar a coleção da Biblioteca Nacional. Agora, além de todas as edições disponíveis também é possível navegar em um ambiente de memórias, a partir de índices que permitem acesso a mais de 200 seções do jornal e textos produzidos por mais de 4 mil colaboradores durante os 22 anos de circulação do jornal.

Os arquivos digitais de O Pasquim estão no portal Hemeroteca Digital Brasileira, como parte de um acervo que conta mais de 7 mil títulos de jornais históricos.

A galhofa impressa

O frenético ano de 1968 sacudiu o mundo com enorme agitação política em diversos países. Desde janeiro estava em curso a Primavera de Praga, movimento ocorrido na extinta Tchecoslováquia. O governo tentava realizar reformas para romper com o domínio soviético e contou com a participação maciça de estudantes e da sociedade em geral. Seus ventos sopraram na direção de Paris inspiradores.

A Guerra do Vietnã vivia sua fase mais aguda e as imagens da violência dos combates e das ações das tropas norte-americanas chocaram o mundo, motivando protestos nos EUA e Europa. Não bastasse, abril registrara o assassinato de Martin Luther King, gerando revolta internacional.

Em 2 de maio, estudantes franceses da Universidade Paris Nanterre, na região metropolitana de Paris, realizaram um protesto contra a divisão masculino/feminino dos dormitórios. O motivo simples embutia um desejo maior, o fim de posturas conservadoras da sociedade francesa. Foi o bastante para que outros universitários, sindicatos, grupos políticos, artistas e intelectuais engrossassem as fileiras com novas reivindicações.

O dia 10 de maio entrou para a história quando o Quartier Latin foi tomado por pelos menos 20 mil estudantes, protegidos por barricadas de carros e móveis no enfrentamento das forças policiais. A manifestação ficou conhecida como Maio de 68 e se espalhou pelo mundo.

Em pouco tempo, os questionamentos versavam sobre estruturas sociais, bipolaridade política EUA-União Soviética, Guerra Fria, Guerra do Vietnã e outros conflitos, corridas armamentista, nuclear e espacial, capitalismo, globalização (e o papel das multinacionais nesse processo), liberação sexual, moral, religião, costumes, ampliação dos direitos civis, liberdades individuais e coletivas… Rebeldia e resistência estavam na ordem do dia.

Em dezembro, o governo militar brasileiro havia promulgado o AI-5. No Rio de Janeiro, Jaguar, Tarso de Castro e Sérgio Cabral resolveram buscar uma alternativa para substituir o tabloide humorístico A Carapuça. Seu editor Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) acabara de falecer e o humor era voz fundamental da resistência democrática. Afinal, como Stanislaw registrara preciosamente, havia um festival de besteira assolando o país e aquilo não podia passar impune.

O nome O Pasquim foi escolhido por Jaguar – nos ensina o dicionário Houaiss que pasquim é “jornal ou folheto calunioso, crítica difamatória”. Ele também desenhou o símbolo e mascote do jornal, o ratinho Sig, baseado na anedota “se Deus havia criado o sexo, Freud criou a sacanagem”. A galhofa estava pronta, batizada e anunciada.

O reduto da melhor esculhambação nacional abriu as portas e foram chegando Ziraldo, Millôr Fernandes, Miguel Paiva, Martha Alencar, Manoel Braga, Claudius Ceccon, Fortuna, Carlos Prósperi, Luiz Carlos Maciel, Flávio Rangel, Laerte, Henfil, Sérgio Noronha, Redi, Caulos, Carlos Leonam, Paulo Francis, Ivan Lessa, Sérgio Augusto, Paulo Garcez, Fausto Wolff, Ruy Castro… Mais adiante embarcou o trio Hubert, Reinaldo e Cláudio Paiva, que viriam a fundar O Planeta Diário, que desembocaria na turma do Casseta & Planeta.

O Pasquim inaugurou aquele tipo de encontro jornalístico com famosos onde as entrevistas aconteciam regadas a quantidades industriais de tabaco, cerveja, cachaça, uísque e petiscos. Algo totalmente na contramão dos jornalões engravatados e que ajudava a descontrair o clima e soltar a língua dos convidados. Por óbvio, os textos publicados pareciam carregar uma evidente alegria subliminar, apesar de pairar no ar a impressão de que a alegria também estava proibida.

A lendária entrevista com a atriz Leila Diniz, concedida em 1969 ao trio fundador – Jaguar, Tarso de Castro e Sérgio Cabral, publicada na edição 22 – ampliou muito a ira dos militares contra o jornal, pois a bela disse verdades e palavrões (devidamente substituídos por asteriscos) a granel. Ou seja, contrariou intensamente diversos pontos da cartilha de repressão à liberdade de imprensa imposta pelo AI-5.

Essa “cartilha” concedia ao general presidente de plantão o direito de censurar livremente publicações consideradas “subversivas” ou “obscenas”. Assim, censores passaram a dar expediente nas redações munidos de uma lista de itens que não poderiam ser abordados, com o requinte de incluir palavras – “tortura” foi a mais “protegida”.

Em 1970, as coisas iam de vento em popa, O Pasquim estava no imaginário popular a ponto de ser citado na letra da música Coqueiro Verde, composta por Roberto e Erasmo Carlos e enorme sucesso na voz do Tremendão: “Pois eu vou-me embora / Vou ler meu Pasquim…”. Tiragens cada vez maiores começaram a atrair grandes anunciantes e trazer dinheiro mais do que suficiente para manter e animar a aventura, algo que começou a gerar uma penca de problemas com o governo comandado pelo general Médici.

Como não havia jeito que desse jeito naquela joça, a sede do jornal, num sobrado em Botafogo, foi alvo de atentado. Por causa de um defeito no detonador a bomba não funcionou e foi desativada por peritos da polícia. Entretanto, ficou o pavoroso registro técnico: eram cerca de cinco quilos de dinamite que teriam levado o casarão pelos ares – certamente matando o casal de caseiros – e destruído muita coisa ao redor além de O Pasquim.

Uma sátira ao quadro Independência ou Morte do pintor Pedro Américo marcou outro momento difícil para o jornal. Foi publicada uma reprodução com um balãozinho daqueles dos gibis atribuindo a Dom Pedro I a fala “Eu quero mocotó!!” no momento do Grito do Ipiranga. Provavelmente a milicada achou indigesta a sugestão do mocotó para curar a fraqueza física do imperador que, segundo consta, estava atormentado por insistente diarreia durante a viagem em que deu o tal grito às margens do riacho paulista.

A sátira levou quase toda a redação do jornal para a prisão por dois meses – Millôr e Henfil escaparam porque não foram encontrados. A secretária de redação Martha Alencar foi liberada no dia seguinte, em respeito à sua gravidez.

Os estrategistas fardados imaginaram que o público perderia o interesse e o vínculo com o jornal enquanto a patota permanecesse encarcerada. Entretanto, Martha, Millôr e Fortuna convocaram um timaço de colaboradores e conseguiram manter a periodicidade normal. Entraram em campo Antônio Callado, Carlos Heitor Cony, Chico Buarque, Glauber Rocha, Hugo Carvana, Noel Nutels, Odete Lara, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Rubem Fonseca protagonizando uma das maiores mobilizações solidárias de intelectuais de que se tem notícia em Pindorama. Os gaiatos imaginam que nasceu aí o ditado “Mais vale um amigo na praça do que dinheiro na caixa”. Para desespero dos “ômi”, as vendas continuavam explodindo em todas as bancas, mais do que Veja e Manchete. Juntas!

Chico Buarque não perdeu a viagem e batizou o sumiço dos redatores de “gripe”. De quebra, redigiu e publicou uma carta repleta de refinada ironia:

– Eu queria abraçar vocês, mas não tinha ninguém aqui. Deve ser por causa de gripe. Ninguém segura essa gripe. Assim mesmo, estimo melhoras.

Os militares poderiam ter simplesmente retirado O Pasquim de circulação, mas pareceu mais prudente não passar recibo maior do que aquela espalhafatosa prisão coletiva. Optaram por tentar sufocar aos poucos, impondo uma censura ainda mais rigorosa para diminuir a tiragem e afastar anunciantes, inclusive utilizando pressão direta sobre eles.

Em 1980, enquanto uma série de instituições – redações de jornais, livrarias, escolas, OAB – sofreu atentados a bomba, bancas de jornais que vendiam publicações independentes e de oposição foram covardemente incendiadas durante as madrugadas. As ações ocorreram de forma simultânea em diversos pontos do país, inclusive para intimidar os anistiados políticos que haviam retornado ao Brasil em 1979 e começavam a retomar suas atividades.

Boa parte dos jornaleiros, compreensivelmente aterrorizados, deixaram de vender O Pasquim e a proa apontou para a popa indicando o fim daquela grande e inesquecível viagem pelo melhor da inteligência e irreverência nacionais. Naqueles primórdios da abertura política, surgiram diversos jornais de oposição e novos conceitos de humor, mas O Pasquim conseguiu sobreviver às novidades e seguir um pouco mais adiante.

Tentar enquadrar O Pasquim em algum parâmetro é perda de tempo, mas é possível afirmar que ele abriu a avenida para a contracultura dos anos 1960, sacudiu a caretice reinante e virou porta-voz da indignação do país contra o regime militar. Como se fosse pouco, contaminou as ruas com seu inesgotável senso crítico e seu humor sem precedentes, ajudando a moldar a linguagem de uma incrível novidade: nossa capacidade de tirar sarro de tudo, até de nós mesmos, para tornar a vida melhor.

O maior legado de O Pasquim talvez tenha sido esculhambar a caretice que dominava o país. Por isso, ter esse acervo ao alcance de um clique, muito mais do que rever a história é compreendê-la.

Saiba mais

https://www.revistabula.com/51809-todas-as-1-072-edicoes-do-pasquim-online-e-com-acesso-livre/

Divirta-se   http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=124745&pagfis=22453

Hemeroteca Digital Brasileira   http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/

©