Por Heraldo Palmeira
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18 de maio de 2024

Vozes da seca

Marion/Pixabay

Vozes da seca

  • Heraldo Palmeira

A seca é uma marca profunda no Nordeste brasileiro e está impressa naqueles fulcros dolorosos no chão esturricado e na alma sofrida da população. Presente na história da Região em registros que vêm desde o século 16.

No momento em que a ONU alerta que a escassez de água está se tornando um problema endêmico a partir de três fatores principais (mudanças climáticas, poluição e demanda exagerada/consumo irresponsável), a Universidade de Berkeley (EUA) anuncia um sopro refrescante para enfrentar o problema registrado em diversas partes no mundo – inclusive na Califórnia, onde está a instituição, uma das mais reconhecidas do mundo.

Os pesquisadores desenvolveram um equipamento portátil que, utilizando a luz do Sol, transforma ar em água potável. “Quase 1/3 da população mundial vive em regiões com escassez de água. A ONU projeta, no ano de 2050, que quase 5 bilhões de pessoas em nosso planeta experimentarão algum tipo de escassez de água durante parte significativa do ano. Isso é bastante relevante para aproveitar nova fonte de água”, afirma Omar Yaghi, professor de química de Berkeley que lidera o estudo e inventor do dispositivo. A engenhoca foi projetada para funcionar em ambientes externos e de extrema falta de umidade, com aplicação no combate às secas, na agricultura e até em uso doméstico.

Os testes foram realizados no Parque Nacional do Vale da Morte, entre Califórnia e Nevada – conhecido como o local mais quente e seco da América do Norte –, e demonstraram que o dispositivo pode oferecer solução rápida e eficiente para a escassez de água, sem qualquer agressão ambiental. Além disso, é capaz de operar por muitos anos sem exigir reabastecimento ou substituição, entregando água potável e livre de poluição para consumo e até abastecer condicionadores de ar.

As notícias de Berkeley são animadoras porque a ONU também aponta 3,5 bilhões de pessoas – quase metade da população mundial – já enfrentando algum tipo de estresse hídrico em uma parte do ano. Some-se o fato de que somente 3% da água doce disponível no planeta é apropriada para consumo humano e irrigação, embora boa parte dela esteja poluída ou inacessível pela falta de tecnologia para captação em larga escala nesses locais.

História Os primeiros registros de seca no semiárido nordestino remontam ao século 16, na época da colonização portuguesa da região. Segundo historiadores e pesquisadores, uma das primeiras situações críticas noticiadas ocorreu entre 1580 e 1583. A falta de água provocou a migração de indígenas pelo sertão e gerou grandes prejuízos aos negócios de fazendas e engenhos das capitanias.

No século 17 é que o Polígono das Secas, espalhado por Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe e norte de Minas Gerais, passou a ser ocupado pelos sertanejos. A migração ganhou força com a emissão da Carta Régia que impunha mudanças na normas para a criação de gado, que passava a ser admitida somente a partir de uma distância de dez léguas do litoral, na direção dos sertões.

No século 18 aconteceu a Grande Seca, de 1877 a 1879, com efeito devastador sobre a população, agricultura e rebanhos. As estimativas apontam que a estiagem matou mais 600 mil pessoas no Nordeste. Algo tão chocante que levou o imperador dom Pedro II a afirmar “Não restará uma única joia na Coroa, mas nenhum nordestino morrerá de fome”. A tragédia provocou a criação de uma comissão imperial encarregada de desenvolver medidas para combater as secas e, como no papel cabe tudo ainda mais quando a tinta é farta, apareceram propostas para construção de ferrovias e grandes açudes, importação e adaptação de camelos para serviços no semiárido e abertura de um canal para levar água do rio São Francisco para o rio Jaguaribe, no Ceará. Isso mesmo, a velha e demagógica transposição do Velho Chico é uma anciã cuja paternidade passou a ser reclamada por vários governos republicanos.

O resultado prático foi a construção, por ordem do imperador, do açude do Cedro, em Quixadá (CE), a primeira grande obra hídrica do governo brasileiro. O projeto foi realizado com barragens nos leitos dos rios para represar águas pluviais no boqueirão do Cedro.

O engenheiro britânico Jules Revy apresentou o projeto original em 1882 e comandou as obras preliminares para construir uma estrada de acesso e instalar o maquinário. A Proclamação da República (15 de novembro de 1889) ocorreu pouco antes do início das obras principais e o novo governo determinou mudanças (no projeto original), realizadas pelo engenheiro Ulrico Mursa.

As obras tiveram início no início de 1890 sob a direção do engenheiro Bernardo Piquet Carneiro. Após várias interrupções, o açude do Cedro foi concluído em 1906 e sua administração ficou a cargo da Comissão de Açudes e Irrigação, chefiada por Carneiro. O açude é uma obra belíssima baseada em monumentos romanos e impressiona com suas quatro barragens represando rios e riachos da região.

Diversas providências como a criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas (atual Dnocs) em 1909, construção de açudes, estações pluviométricas e uso da técnica de chuvas artificiais não foram suficientes para conter a estiagem inclemente, que avançou incólume pelo século 20 e permanece na paisagem até hoje. Essa realidade germinou a indústria da seca, uma instituição abstrata e tentacular que moldou a Transposição do São Francisco como pilar principal do populismo que vem torrando recursos públicos ao longo de décadas. Uma dinheirama que inunda todas as correntes políticas a partir de programas vergonhosamente paliativos e perenes, que alimentam sem pudor o bueiro da corrupção e até promovem inaugurações festivas de coisa nenhuma.

Poesia da dor A repetição por décadas das cenas de sede, fome, epidemias, miséria e migrações gerou um doloroso, comovente e repetido êxodo cujos personagens ficaram conhecidos como retirantes da seca, que também deu fama ao caminhão pau de arara. Esse fenômeno socioeconômico e cultural teve em Luiz Gonzaga seu grande bardo, sanfona em punho. E São Paulo como destino principal.

A poesia do parceiro Zé Dantas, vestida a rigor no gibão de couro costurado pela voz poderosa de Seu Lua em Vozes da Seca (link abaixo), virou um clássico carregando seu lamento como retrato histórico, uma espécie de soco no fígado da demagogia política.

Mas doutô uma esmola a um homem que é são

Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão

Outros hinos dessa diáspora poderosa se derramam clássicos pela voz do bardo. A Triste Partida (Patativa do Assaré) e Légua Tirana (Luiz Gonzaga-Humberto Teixeira) – links abaixo –, machucam mas confortam quem passou por tudo e até quem apenas ouve de longe e livre da dor original.

Cantar foi o jeito de diminuir a vergonha na hora de contar que foi preciso ir embora para não morrer. De não negar a fé mesmo sem ter a graça alcançada. De seguir a sina de buscar o que quase nunca veio. De nunca deixar de agradecer pelo pouco que se salvou. De nunca deixar de sonhar com a volta para o chão natal, mesmo que na volta tudo pareça estrangeiro.

Ouça aqui

Vozes da Seca   https://www.youtube.com/watch?v=lLtWYGeMMuo

A Triste Partida   https://www.youtube.com/watch?v=W9uTaVv-xeA&t=3s

Légua Tirana   https://www.youtube.com/watch?v=bXNbZqc-f-E

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