Reprodução/Netflix
Wandinha toca o terror
- Heraldo Palmeira
GIRAMUNDO VIU Num negócio repleto de megassucessos medidos em bilhões de minutos assistidos, Wandinha, produzida pela Netflix, revisita o universo da Família Addams sob o olhar pop-gótico precioso do diretor Tim Burton. E o resultado não deixou por menos: de cara foi para o topo da audiência em mais de cem países e passou a liderar a busca no Google para obras similares.
A Família Addams foi criada pelo cartunista norte-americano Charles Addams (1912-1988), conhecido pelo seu humor incomum que certamente ajudou a construir personagens macabros. Chegou ao público como coletânea de desenhos publicada pela revista The New Yorker – onde ele era colaborador – a partir de 1938. Ao longo do tempo, a família ampliou a fama adquirida nas tirinhas para outras mídias, aparecendo em série de TV, musical e filmes de Hollywood.
Rodada na Romênia, Wandinha é uma deliciosa série de humor negro que já virou fenômeno cultural e conta com um charme especial: estão salpicadas pelo enredo muitas referências às artes, com homenagens a clássicos do cinema e da literatura.
Harry Potter está lá de forma bem óbvia. O terninho verde de Tippi Hedren em Os Pássaros (Hitchcock) é reproduzido no figurino de Gwendoline Christie, que dá vida à mercurial diretora da escola que centraliza a trama, cujo desempenho acaba remetendo a atrizes da época de ouro de Hollywood – a imponência dos 1,91 m de altura da atriz ajudam sobremaneira na composição da personagem.
Também não faltam alusões a clássicos do terror, como Carrie (Stephen King), Frankenstein (Mary Shelley), bem como a obras e ao próprio escritor Edgar Allan Poe – seu poema O Corvo, publicado em 1845, passeia livremente pela trama. É o corvo falante de Poe que repete insistentemente a expressão “nunca mais” que dá nome à Nevermore Academy (Academia Nunca Mais) da trama.
Trata-se de um estranho lugar criado para seus alunos adolescentes aprenderem e cresceram, não importa quem sejam. Por isso, vivem lá desajustados, esquisitos e excluídos da sociedade considerada “normal”. É onde a protagonista e seus amigos se conectam por meio de suas peculiaridades.
Gerada no seio da aristocrática, rica e macabra Família Addams, a história começa quando a primogênita adolescente é levada para Nunca Mais, nos arredores da cidadezinha fictícia de Jericho. Funciona em sistema de internato, onde ela deverá adquirir o amadurecimento planejado pela mãe e desenvolver o domínio de seus poderes paranormais.
A menina chega na impressionante limusine da família, acompanhada pelo pai Gómez (Luiz Guzmán), a mãe Mortícia (Catherine Zeta-Jones, sempre linda!), o irmão Feioso (Isaac Ordonez) e o criado da família. Também está no elenco com grande destaque Christina Ricci, que já encarnou Wandinha em versões anteriores no cinema.
Mortícia deixou às escondidas na bagagem, como fiel escudeira da filha, Mãozinha, uma mão coberta de cicatrizes que tem vida própria. “Poliglota”, digamos assim, ela se comunica estalando os dedos, por código Morse e língua de sinais. Esse personagem é um mistério completo, nunca houve explicação de como chegou à mansão dos Addams. Sua “cara” está baseada numa charge do próprio Charles Addams, criador da família, publicada no tempo das tirinhas da revista The New Yorker.
A equipe de cenografia reproduziu como fachadas de várias lojas de Jericho – brechó, floricultura e sapataria – ilustrações que o próprio Addams inseriu na série original impressa. O trabalho contou com a participação de estudantes de arquitetura e escultura de Bucareste, bem como diversos outros artistas locais.
A atriz Jenna Ortega é um primor no papel da adolescente infame, fria, astuta, determinada, sinistra, malvada, alérgica a cores, sempre vestida de preto e que nunca sorri – mesmo assim, é uma das figuras mais queridas da cultura pop. Em plena adolescência, é obrigada a conviver com sociedades secretas, bibliotecas exclusivas, pessoas com poderes especiais e monstros assassinos, num lugar onde há muito mais perguntas do que respostas.
Por isso, Wandinha se entrega à perigosa tarefa de desvendar os segredos que atormentam Nunca Mais e vai conquistando aliados entre os colegas. Enquanto ela se envolve com os mistérios que pairam sobre a cidade, descobre que os pais se conheceram 25 anos antes, quando eram alunos da escola e estiveram no meio de um fenômeno sobrenatural. Sim, é de tirar o resto de juízo de qualquer um. Ainda bem que muitas risadas estão garantidas para aliviar o suspense.
Diante do sucesso imediato, já circulam rumores de que a série poderá chegar a 4 temporadas e, em razão da riqueza dos personagens, ter um universo repleto de spin-offs (obras derivadas) para que ganhem papéis principais em roteiros específicos. Uma das ideias seria criar outra série para mostrar o período em que Gómez e Mortícia eram alunos de Nunca Mais. Outra, o período em que Feioso vai passar sua temporada de crescimento na escola.
Luz nas profundezas
Com o crescimento do conceito de entretenimento e da rapidez que domina a vida moderna, é comum as pessoas pensarem que a criação de uma obra literária, musical e cinematográfica pode, em certa medida, ser desenvolvida de forma frugal apenas para entreter pessoas. Na maioria dos casos, o que se lê, ouve e vê costuma ser resultado de pesquisas e soma de conhecimentos acumulados em várias épocas. O que termina sendo ótimo para o ambiente da arte e formação das bases culturais da sociedade.
Charles Addams criou sua obra genial a partir de uma família aristocrática, rica e macabra porque queria satirizar a família ideal americana. E a sátira já começa pela origem da fortuna familiar dos Addams, iniciada por Vovó, mãe de Gómez, que juntou muito dinheiro enganando pessoas ricas na Europa. Tio Chico, que tem posição dúbia na árvore genealógica – ao longo do tempo apareceu (em produções diferentes) como irmão de Gómez ou tio de Mortícia – também colabora com a parte financeira roubando bancos e cometendo outros assaltos. O próprio Gómez é apresentado como advogado bem-sucedido, mas também estaria envolvido com negócios suspeitos. Outra pitada charmosa de referência sugere que Mortícia seria descendente das bruxas de Salem, que realmente viveram no século 17 em Massachussets, e também teria certos poderes de feitiçaria.
Os personagens saíram do mundo impresso e ganharam carne, osso e movimentos numa série televisiva produzida pela rede ABC (1964 a 1966). A convite do produtor David Levy, Addams se envolveu diretamente na produção e desenvolveu diversas características pessoais dos personagens para facilitar a vida dos atores. A partir daí a matriarca Mortícia Addams, que ganhou vida pela atriz Carolyn Jones, fez com que muitas outras estrelas tentassem chegar às telas encarnando a mãe de Wandinha.
O criador soube usar seu humor incomum para alimentar sua criatura. Tanto que o cenário da série teve inspiração no apartamento em que ele vivia em Manhattan, onde havia até uma mesa de embalsamamento utilizada como mesa de centro na sala. O seu terceiro casamento, com Marilyn Miller, foi celebrado em um cemitério de animais na propriedade “O Pântano”, onde o casal vivia. Ele morreu de infarto dentro do próprio carro e, por sua determinação, o funeral foi substituído por uma vigília onde suas cinzas foram sepultadas no mesmo cemitério onde trocara alianças.
Os anos 1990 trouxeram uma onda de adaptações de séries de TV para o cinema. Em 1991 foi a vez da família macabra, quando o diretor Barry Sonnenfeld trouxe à luz o longa A Família Addams. Desta feita, a matriarca ganhou um lustro espetacular da atriz Anjelica Houston, para muitos a melhor de todas as Mortícias que já apareceram para encantar e assombrar os fãs – o papel foi desejado pela cantora Cher, que tinha muitas características físicas da personagem original das tirinhas. Gómez ficou com o ator Raúl Juliá e, numa dessas coisas inexplicáveis, a direção foi recusada por Tim Burton.
O nome de Wandinha
Rimas e adivinhações com base no dia da semana de nascimento das crianças têm origem na Inglaterra e tentavam fazer previsão a respeito da personalidade do bebê partindo desse detalhe. Há registros que em 1570 já se contavam histórias a crianças de Suffolk associando a sorte à data de cada um.
Embora Charles Addams tenha escolhido uma sexta-feira 13 para o nascimento de Wandinha, entra em cena o poema Monday’s Child, que serve como letra para uma canção de ninar e foi publicado em 1838 pela escritora inglesa Anna Eliza Bray em seu livro Traditions, Legends, Supertitions and Sketches of Devonshire.
Esse poema é o favorito de Mortícia. O trecho Wednesday’s child is full of woe (A criança de quarta-feira é cheia de aflições) inspirou a matriarca a batizar sua filha de Wednesday (quarta-feira, no inglês original). E já no primeiro episódio da série, ela explica: “O nome dela vem de uma frase do meu poema infantil favorito. Wednesday é só desgosto”.
A revista americana Harper’s Weekly publicou em sua edição de 17 de outubro de 1887 o capítulo de uma história fictícia em que citava “O filho de sexta-feira está cheio de aflição” – há quem acredite que essa associação da má sorte à sexta-feira esteja relacionada à crucificação de Jesus, ocorrida nesse dia da semana.
Quem sabe, o criador de A Família Addams tenha resolvido esse dilema concedendo a Mortícia o direito de escolher o nome de sua menina em razão do poema preferido? No Brasil, Wednesday virou Wandinha, como se nos fosse impossível compreender o nome original, apesar da pronúncia complicada. Talvez um apelido como “Wed” tivesse resolvido o problema.
Quando chegou aqui como série de TV (em 1965), o nome foi traduzido para Vandinha. A ideia era facilitar a compreensão do público e, mais ainda, o trabalho dos dubladores. Agora, para aproximar mais a grafia, a Netflix resolveu trocar o “V” pelo “W”. O que interessa é que muitos os mistérios dos Addams estão aí e muitos outros ainda vão aparecer para nos assombrar e entreter.
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